Cenas de um Casamento

— Rê, você ainda me ama?

Renato continuou enxugando as mãos. Dedos enrugados. Gostava de suas mãos, que Márcia dizia ser de ogro.

— Esse clichê de novo, benzinho?

Márcia tinha um daqueles sorrisos tímidos e introspectivos, dedões do pé enormes. Gostava de chanel e dizia ser eterno, mesmo com o Renato grunhindo que ela não tinha mais idade pra "esse cabelinho".

— Fala, fala, amor?

— Ah...

— Amo, porra.

— Estúpido.

Márcia era um clichê mesmo. Botava as mãos na boca para sorrir. Empinava a bunda na frente do espelho, torcia o pescoço para trás como uma ave esdrúxula e ficava contemplando seu par de nádegas. Odiava celulite e gostava de chocolate. E do Renato.

— Má, sabia que sua mãe é gostosa?

Márcia encobre a os lábios com mãos. Surgem dois olhos castanhos comuns, comuníssimos. Depois ri mostrando a gengiva.

— Isso também é um clichê, sabe que não ligo...


A mãe de Márcia é alcoólatra e problemática. Márcia passou a vida de clínica em clínica, vendo sua mãe se deteriorando “física e psiquicamente”. Márcia gostava dessas expressões, lembrando de seu pai, outro clichê (advogado: bem sucedido). "Moral e fisicamente". Lembra que o pai tinha mãos minúsculas e sempre estava folheando papéis. Aproximava a face no papel para ler, comprimindo os olhos para focalizar. Seu pai vertera-se em suas lembranças num binóculo desfocado.

Seu marido sempre dava um jeito de enfiar sua mãe bêbada em suas conversas, tentando incutir uma sensação de normalidade ao fato de sua sogra ser uma velha bêbada.

A velha começou a beber como um clichê, sentia-se só, o marido tirava bandidos da cadeia enquanto ela bebia hi-fi.

Nunca teve tempo pra filha ou para a esposa. Disso Márcia não podia reclamar: achava muito "fofo" que seu marido tentasse verbalmente construir uma vida "normal", expelindo para longe uma mulher precocemente envelhecida e bêbada, cuja satisfação era causar pequenos escândalos no prédio velho onde morava. Renato transformara a velhota em uma gostosa, numa tara de Nelson Rodrigues. E repetiam-se os dias: "você me ama", "sua mãe é gostosa?" e o gesto diário de olhar estrias na bunda. Márcia com a mão na boca.

Renato costumava dizer que conheceu "a velha" pelo cheiro antes de ser apresentado aos outros sentidos. Márcia tapava o rosto rindo.

— Rê, pega um chocolate?

— Isso dá celulite.

O telefone tocou. A velha tinha pulado do décimo quarto. Renato resolveu toda a burocracia. IML. Foi interrogado por um investigador querendo mostrar serviço, novato, tentando incluir "a velha" numa história rocambolesca de traição, conspiração e herança. Terminada a burocracia com 007, a velha foi enterrada. Sentem-se culpados por sentir alívio.

"Sabia que sua mãe é gostosa?" era uma espécie de pêndulo, de compasso da relação. Era um yin yang quotidiano. "você me ama?".

Na ausência da velha, Renato e Márcia se esbarravam, não sabiam o que fazer, até iniciarem um novo ciclo. Começava com Márcia perguntando:

— Amor, você acha que meus peitos estão caindo?


Thiago Cardoso

O maior homem do universo – parte I

Davi crescera acostumado à sensação de ser O Outro. Desde que compreendera tanto sua identidade quanto a concretude do mundo, abandonando o solipsismo característico da infância, afastara-se deste mesmo mundo de forma intuitiva, como uma reação impressa em seus genes (que, se investigados, quem sabe não contassem histórias milenares parecidas). Criara-se um menino arisco, calado, disposto a entregar tudo para não depender de tudo. Tinha medo do que o cercava, fosse gente ou circunstância, passado ou futuro. Desenvolvera uma ansiedade crônica por intermédio disso, porém sentia na alma que essa postura temerária o perseguia desde que Universo havia deixado de ser uma singularidade, e que suas reações tão peculiares diante da vida eram somente ecos, não tensões com a própria realidade. Davi era o que era; e, por fim, já beirando a casa dos trinta, começava a entender essas coisas. Deixara de lamentar as suas vãs incongruências, as suas inquietações com o banal de nossos dias. Mas as reações por si continuavam. Era sua natureza, embora agora mais acomada e compreendida. E foi esse seu modo de vida que o catapultou contra um adversário da vida, aquele que se manteria para sempre o seu antagonista absoluto. O problema tinha um metro e setenta e quatro de altura, noventa e sete centímetros de busto, cinqüenta e dois de cintura e noventa e nove de quadris, longos cabelos castanhos repletos de luzes, uma boca carnuda, grossa, cartunesca, olhos límpidos, azuis como o céu daquela tarde, o nariz fino e rebitado como se exigia a uma princesa.

Anelise flutuava pela 24 de Outubro, e era imperatriz também daqueles domínios. Seus cabelos castanhos pingados de ouro brilhavam intensamente sob o sol, enquanto nos dois lados da avenida alguns vassalos restavam atônitos diante do seu poder. Ao aguardar o sinal na esquina com a Goethe, Anelise virou o olhar para o céu. Uma infinitude de azuis percorria o espaço. O sol, mesmo tão poderoso, entrava difuso pelas grossas lentes de seu Louis Vitton, aquele de aro branco pelo qual tanto era apaixonada. Sentia que mesmo das sacadas dos prédios lhe observavam, e ela as percorria com os olhos, contente, embora aquela arquitetura setentista não lhe agradasse.

O sinal ficou verde para Anelise. As listras brancas do asfalto estavam pintadas ali para traçar o seu caminho em mais um desfile aberto a tantos olhares entorpecidos, perdidos que estavam diante dos volantes, ou lá dentro do ônibus, segurando a bolsa de alguma velhinha. Todos os sexos a contemplavam. Salvo a inveja mais legítima de algumas mulheres, elas a admiravam plenamente. Para as mais jovens, Anelise era sinônimo de ideal a ser atingido; para as senhoras, representava uma beleza nostálgica e repaginada pelos novos tempos e suas modas. Era o início do verão, e Anelise trajava uma saia branca Chanel sutilmente plissada, cujos movimentos hipnotizantes decoravam coxas fortes e reluzentes. A blusinha de lã estampada da Colcci se desregrava, pondo à mostra aquela cintura de taça de tulipa, coberta por uma fina pele bronzeada. Os seios não abusavam de nenhum decote vulgar, mas se aprumavam como montanhas gêmeas, suas curvas dotadas daquele ideal que é imperfeito geometricamente mas perfeito em sua impressão total, capaz de excitar o mais fugidio dos olhares. Não se ousaria na prosa fácil imputar movimentos bailarinos a essa esplêndida Anelise, porque a força com que enterrava suas sandalhas Gucci na calçada vinha mostrar a todos a superioridade da beleza enérgica, intrépida, orgulhosa. Assim é que deviam ser as mais cantadas princesas das cortes clássicas. Pois agora a beleza antiga se rendia às marcas globais da haute couture e do artesanato muscular das academias de ginástica. E era isso que Anelise representava, portando o ar nobilíssimo e altivo o qual compartilham na História todas as deusas da beleza.

Porém, aquele não era um dia qualquer. Os astros haviam se alinhado, e o reflexo do fenômeno incidia diretamente sobre Porto Alegre. Os semáforos enlouqueciam, os cachorros latiam, as atendentes da repartição pública sorriam (zombeteiras). Davi desceu do ônibus e pôde ver que a rua estava vazia. Acabara de acordar do cochilo durante a curta viagem, custo da noite insone – custo tão recorrente que já vinha em débito automático. Dessa vez nem bebera tanto, mas o bafo de cerveja já fazia parte do seu organismo, a digestão já tendo dificuldades em prescindir do suco gástrico de cevada. Contemplou os dois lados da Padre Chagas e andou, andou firme, de tão absorto. Como sempre, trazia o seu uniforme: o óculos grosso e intimidativo, o velho casaco preto, de quem já morreu, e um livrinho amigo debaixo do braço. Vinha junto de Davi uma carcaça, um endoesqueleto de plástico, exíguo de proezas, se bem que até coberto de alguma resistência, pois não era fácil essa vida de carregador de livros e HQ’s. Vivendo num arrastar fantasmagórico, quase que impersonalizado, o espírito vê-se na necessidade de se dobrar, de inventar coisas, de surgir com intenções e desejos totalmente inéditos para juntar forças e rebocar o que sobra do indivíduo. Davi gostaria muito de poder se livrar desse substrato incômodo, ou de obter a chance de trocá-lo, quem sabe trocá-lo seguidamente, como um refil. Ou como a pele de um lagarto. Não que restasse grande coisa debaixo disso, embora não fosse muito modesto ao avaliar suas capacidades intelectuais. De qualquer forma, o que o amedrontava mesmo era perceber que não era um caolho em terra de cego, mas um homem azul em terra de povo amarelo e elite vermelha.

O vento apertou, e Anelise teve que segurar a saia para não causar maiores estragos ao trânsito da avenida. Mas logo livrou todas aquelas pobres almas de suas penitências ao dobrar a esquina da rua do banco. Prosseguiu firme, como sempre, contemplando os desenhos que o sol fazia sobre a escultura babilônica, enquanto a mente ponderava horários e compromissos. Não que tivesse muitos; o caso é que não era das mulheres mais decididas. Vivia desmarcando encontros e mudando trajetos em cima da hora, porque uma alternativa qualquer, então quase esquecida, subitamente iluminava-se, como aquele anel H Stern que ganhara ano passado. No momento ela até tinha lá alguma segurança sobre seu destino; vinha de um pequeno passeio no parque, depois de uma tentativa frustrada de marcar com algumas amigas um chimarrão ao fim da tarde, e voltava para, quem sabe, sua casa. Não gostava de ficar vagando pelas redondezas, assim, meio perdida, embora sempre surgisse algum amigo ou estranho para lhe oferecer um pouco de seu tempo.

Aconteciam os momentos de desligamento total de Anelise, sim, aconteciam; ela podia ficar completamente ignorante de sua influência sobre o ambiente, mesmo que por poucos segundos. É que há certos pensamentos que são inadiáveis, são instantâneos, mas sabia que devia ter um maior controle sobre si mesma. Agora, por exemplo, ela rememorava todas as histórias do seu último fim de semana na praia, e as imagens surgiam com muita força, intrépidas. Com tantos momentos especiais avultando-se em sua cabeça, dobrou a esquina com um grande sorriso no rosto. E poucos foram tão felizes quanto aqueles que a vislumbraram naquele instante. Será que imaginariam o que viria a seguir, a poucos metros de mais um instante sublime?

Pois um homem não olhou para Anelise. Nem sequer se moveu. Não fosse pelo movimento dos dedos sobre a mesa do bar, o dariam como morto. O mundo congelou-se então. Anelise observava aquele homem como a quem observa algo repugnante. Mas logo a repugnância deu vazão à curiosidade, uma curiosidade ao estranho. Impunha-se uma ponta de ansiedade, nervosa que estava ficando com aquele descaso. O homem mantinha sua concentração no livro, numa pose de quem descansa no sofá de casa enquanto a TV só empresta ruído ao ambiente, como agora o movimento da rua repetia, e os carros buzinavam, e o couro e a camurça batiam sobre as pedras da calçada. Por que não olhava? Por que não olhava? Que rebeldia estranha, uma tola afronta aos instintos, ao faro das ruas, aos andares, à sedução pública. Quem ousaria neste século revolver a mais irremediável das instituições, que é o olhar que se furta? Anelise nutria agora uma esperança telecinética, com a visão a imaginar aqueles olhos baixos e engarrafados penetrando na sua carne. Não adiantava, não se mexiam.

Anelise desistiu e virou-se para prosseguir. Seus pensamentos já não eram assim tão vãos, pois incidiam sobre aquele homem como uma turba contida. Claramente não era acostumada à inquietude, mas que dirá então a ser ignorada? Entregar-se àquele sujeito insignificante? Permitir que tal fato se consumasse? Era quase uma distopia. Desvirou-se, os cabelos rodopiando sobre os ombros, e a boca comprimindo-se num furor mal disfarçado de insipidez elegante. Firmou o passe em direção à mesa. Olhava, e desviava o olhar. Insistia, prosseguia, o coração pulsando, impelido por um inédito temor. A insignificância do sujeito não a dissuadia, como se por caridade estivesse oferecendo a ele um momento único, histórico. Anelise bem que poderia tentar esquecê-lo, mas aquele rosto pueril e compenetrado de qualquer forma teria deixado alguma marca sobre o fundo impressionável da sua mente.

Desviou o caminho. Ou tentou, porque ao esbarrar no garçom repentino, teve que, sem cerimônias, esgueirar-se por entre ele e a cadeira do estranho homem. A cena era ridícula, Anelise sabia disso. Não obstante, sentou-se, recolhida a uma das mesas mais próximas, quase de frente para ele, de onde podia continuar mirando o não-movimento de sua postura enigmática. Observava-o fixamente, de uma maneira constrangedora, tanto que já havia algum burburinho entre algumas meninas perto do balcão. Enquanto isso, do outro lado, um bando de rapazes suplantava o seu bate-papo com comentários sobre os prodigiosíssimos atributos de Anelise; que beleza era essa que, mesmo distraída, emanava a essência ativa, buscando os menores espaços da indigência mundana para inspirar o culto báquico, uma adoração redentora, uma realização magnífica.

Mas havia um homem capaz de revolucionar tal universo. Anelise não fora só pega de surpresa; mais do que isso, fora jogada em outra realidade, como quem acorda sufocando na pressão do oceano. Mesmo em seus instintos mais primários, nunca pensara na hipótese daquele homem existir. Sobre o mundo dela havia compêndios, enciclopédias, tratados e hagiogramas, inspirações divinas e arrebatamentos mundanos que jamais registraram um só passo daquele ser. Onde estava? E quem o jogou neste mundo?

Anelise não podia suportar. A beleza nunca foi pré-requisito para a resiliência, pelo contrário, talvez fosse sua antítese, ao menos na selva humana. Sua face dantes dourada e aguda começava a partir-se como louça antiga, e o esplendor de sua postura ruía como uma torre taromântica. Havia uma revolução em andamento, porque aquele homem inexpressivo e monolítico deslocava o centro de gravitação da belíssima Anelise como um demônio copernicano. Uma lágrima percorreu o calor de sua bochecha e repousou no couro frio da Victor Hugo.

O homem finalmente ergueu o rosto. O coração de Anelise disparou de vez, e ela se encolheu na cadeira. Seu suor reluzia pelo decote como lâminas em curva, provocando diversas reações pelo ambiente, reações que não mais lhe importavam. O homem girou o pescoço e pôs-se a observar a rua e a calçada, repousando o maciço livro na mesa. Anelise trocava de posição na cadeira a cada segundo. O homem pôs a mão no queixo e enfim deslocou o olhar para dentro do ambiente. Por um centésimo de segundo, cravou seus olhos nos olhos de Anelise (que respirou fundo), depois passou em seguida para as meninas do bar e então de volta ao seu livro. Anelise quase saltara da cadeira, e por pouco não riu de si mesma, tamanha a extravagância da situação. Mas o mundo é estranho, sabia, eternamente estranho. Limitou-se a sorrir quando concebeu o grau de ridículo em que se metera. Tal constatação lhe trouxe uma espécie de alívio, como quem escapa por pouco de um estado de demência. Suspirou, e olhou em volta, percebendo o fato de ainda ser o centro do universo visível. Ergueu o tronco e jogou os cabelos, e dessa vez a cadeira é que encolheu ante sua postura. Ali em frente estava o homem, e não era um homem, era um sujeitinho qualquer, pois agora ela voltava a ter discernimento. Um homem muito estranho, com barba onde teria rosto, com cravos onde teria barba. Seu nariz ossudo sustentava um óculos de aro grosso e lente funda, e a boca, nervosa, mastigava o ar com timidez. Lia alguma coisa a ver com Nietzsche, uma capa estranha, com escama de peixe, e folheava com a rapidez de quem enxerga as palavras mas não as lê. Onde é que estaria a atenção dele naquele momento?

Anelise nunca havia pensado onde é que estaria a atenção de alguém. Antes que mais novidades sobreviessem, levantou-se rapidamente e pôs-se para fora dali com todo aquele ímpeto de andar de passarela, podendo ouvir os gritos de protesto e de adeus, mas sem poder matar a curiosidade. Porque não olharia para trás. Não mais contribuiria para a existência vaga e nefanda daquele guri. Não mais.

Até que chegou na esquina e teve um ataque súbito de consciência retroativa. O guri não olhara. Não olhara. Tinha certeza, não olhara. De alguma forma, a realidade havia se remodelado. Estava incontida e angustiada; mas com quão magnífica visão era agraciado o guardador de carro do outro lado da rua, e o executivo antes nervoso ao telefone, e o motorista agora esquecido dos problemas. Que caridosa era a beleza de Anelise! O Senhor olha por nós!

Davi tinha certeza de que aquela moça havia olhado para ele, mesmo que por um segundo. Entendia o suficiente de mulheres para prognosticar seus olhares; eram geralmente sinais claríssimos de atenção. Mas Davi não podia conviver com isso, ah não, porque prognosticar as mulheres sempre se mostrou uma tarefa árdua, perigosa, coisa de especialista, e tais especialistas ou são gays ou são completos idiotas, pensava. Não queria ver-se enroscado mais uma vez na trama espessa e confusa da arquitetura feminina, percorrendo o caminho já bem conhecido entre a dúvida e o acúmulo de mais dúvida, a restar as incomodações típicas, estas sim bem conhecidas e eternamente diagnosticadas. Ora, bastava de elocubrações, porque de fato não houve beldade alguma distribuindo olhares generosos – é claro que não, repetia para si mesmo.

Davi afundou a cara no livro. Seus ouvidos se aguçaram, restituindo as ações do ambiente na tridimensionalidade de sua cabeça. Repetia cinco linhas de um mesmo parágrafo até que pudesse acompanhar toda a retumbante passada de uma mulher que se dirigia vibrante ao banheiro, e demorava-se sobre palavras desfocadas enquanto notava o tilintar de pratos, copos e xícaras, ruídos que de picotantes findavam harmoniosos e serenos, mentalizando um cenário de pessoas completamente ignorantes de sua beleza, na qual elas próprias participavam. Além disso tudo, além da frugalidade universal, não havia muito que Davi pudesse perceber, e por isso é que tomou já um susto muito grande quando alguém se aproximou e se dirigiu a ele, alguém que não era um garçom. Do susto foi ao pavor quando pôde entender que ser era aquele que se materializara à sua frente.

Anelise segurava a alça da bolsa com firmeza junto ao corpo. A tensão do encontro cara a cara era ainda maior do que havia imaginado. Em seu trajeto de volta, ela viera desde a esquina mordendo os lábios num estado de ansiedade que jamais imaginou para si, nem nos mais aquilatados eventos dos quais tanto participava (aliás, que beleza era essa que não impedia tais temores?).

— Comece a sorrir – ela falou baixinho, se inclinando.

— Oi?

— Comece a sorrir – repetiu, com uma risadinha sem graça.

Era um pedido ou uma ordem? Davi não teve lá muitas dúvidas e sorriu timidamente. Anelise fez o que pôde para transformar o seu próprio sorriso forçado n’um contentamento genuíno.

— Agora finja que nos conhecemos – falava por entre os dentes cerrados, buscando o máximo de discrição. Davi, muito admirado, já intuía um tom sério e formal.

— Olá!...

— Anelise – completou ela, mais baixinho.

— ...Anelise!

— Ane, melhor Ane – Davi quase não ouvia mais sua voz.

— Ane! Tudo bem? – e Davi se levantou intrepidamente da cadeira, exclamando “Não tinha te visto!”. Formidável ator, sem dúvidas, já que tremia por dentro. Fez menção de avançar o rosto para cumprimentá-la aos beijos, coisa de quem é íntimo, mas, além da estupenda e intimidante beleza, aqueles olhos cintilavam de um jeito estranho, ameaçador, como duas armas apontadas impedindo qualquer tentativa de movimento mais brusco.

Que encontro formidável este, de tensões infinitas! Entre eles uma troca incessante de olhares fugidios, como que temendo a suma batalha. Não por menos que Davi estivera ouvindo muito Enio Morricone nos últimos tempos – quem sabe seu instinto musical já previra o insólito confronto. E quem sabe não fosse mais agradável trocar o Moinhos de Vento pelo Velho Oeste, o Candy Blue por algum saloon caindo aos pedaços.

Mas haveria mesmo como pensar n’um confronto ao contemplar aqueles olhos verdes, tão maravilhosos? Aquela boca tão vívida e tão bem moldada? Aquele corpo tão matematicamente esculpido? Imaginar descaso ou vingança mesmo ao sentir aquele aroma, aquela essência alquímica inebriante? Anelise era um cadinho onde se misturavam as mais fêmeas das substâncias; o resultado era um disparate contra o intelecto casto, uma tentativa constante de liquidar a boa razão.

Davi nunca vira algo parecido, e por isso estava ainda mais curioso. Pediu outro café. O garçom ficou olhando para Anelise por diversos motivos, e também porque aguardava o seu pedido, mas ela logo o privou do deleite e disse-lhe que também queria um café. Com açúcar.

— Bem, e então? – disse Davi, finalmente. Já não agüentava mais. Continuava atuando muito bem, parecia calmo e sereno, sem nem imaginar o quanto crescia diante de Anelise com esta postura, tanto que ela agora evitava olhar nos seus olhos.

A resposta não vinha. Davi contemplava a mesa enquanto coçava a perna por baixo dela. Quem assistisse à cena imaginaria se tratar de um casal em crise, embora só abstratamente, pois que nunca conceberiam sequer um beijo entre aqueles dois personagens.

O celular de Anelise tocou, e a vibração oca sobre madeira assustou-a como um tiro. Irritadíssima, desligou o aparelho, esbravejando baixinho, visivelmente transtornada.

— Desculpa, é o seguinte – disse, e parou de repente, fitando os olhos redondos de Davi, como que acordando para a realidade. Começou a rir, e o sangue fervente fazia-a enrubescer ainda mais. Um sarcasmo acríssimo sibilava por seus olhos, como o escape do que refletira brevemente – isso só pode ser brincadeira! Será que estou ficando louca?

Davi, aflito, também queria a resposta. Foi abrir a boca, quando o garçom repousou duas xícaras na mesa, e então decidiu se ocupar com o café.

— Quem é você, afinal? – foi o que ela perguntou. Não havia pergunta mais difícil e nebulosa no Universo. Quando Davi a repensou, seu cérebro quase explodiu, e o que Anelise via eram só piscadelas, rapidíssimas, como um olhar de criança.

— Por que você quer saber? – Não lhe parecia haver réplica mais precisa do que esta. Anelise achou-o rude, mas jamais ele quis sê-lo. Assim como acontece com as crianças.

— Eu sempre fiquei imaginando como seria esse dia.

— Que dia?

— O dia em que eu sentaria por minha própria vontade à mesa de um estranho e o retardado perguntaria o que eu estou querendo.

Davi olhou bem nos seus olhos desta vez, enquanto ela ria afetadamente. Sim, ela realmente quisera dizer aquilo. Então, um estalo – Davi sorriu (não sem assustar Anelise) e pôs-se a perscrutar as paredes, o teto e a movimentação na rua em busca da câmera escondida.

— É uma pegadinha? – enfim perguntou, e achou que Anelise ria de sua ingenuidade, quando na verdade ela achava incrível os dois estarem pensando na mesma hipótese. Porém, quem seria idiota a ponto de montar um enredo tão nonsense? se perguntou.

— Qual é o teu nome?

— Davi...

Anelise estendeu a mão, e se cumprimentaram. Davi estava cada vez mais incrédulo, e foi a vez de perguntar:

— O que você quer?

— Nada, é que gosto desta cadeira.

Davi riu e continuou procurando câmeras.

 

Renan Santos

Sultanato

1.

Antes do alarme de seu relógio despertador, seus olhos se abriram e soube que o horário de ir ao seu trabalho aproximara-se. Resolveu interromper o seu galo portátil antes que começasse a cantar e a acordar toda sua família. São, ao todo, junto como cachorro, e sem ele, 8 pessoas. Hoje é dia de pagamento, o que lhe traz uma sensação ambígua. Todo seu pagamento iria para o sustento de seus irmãos, dízimos à Igreja que sua mãe freqüentava, além de remédios e garrafas de bebida para seu padrasto. Olhou, na penumbra, o olhar de um santo, perguntando a si mesmo porque os santos têm olhares piedosos? Há, ainda, em sua casa, vestígios de todas religiões que sua mãe, estoicamente, alternou durante todos os anos. Não era de se espantar que ali, junto à bíblia aberta no salmo 91, houvesse um santo acólito a observar toda a família. Virou-se, pois não gostava de ser encarado – mesmo que esse olhar viesse de um santo – com piedade. Seu bairro passa por dificuldades na transmissão de energia elétrica, por isso há velas disponíveis por toda casa. Pensou em atear fogo sobre si, sobre seus irmãos e mãe, além do padrasto, por onde começaria pelo bigode. Abandou a idéia, porque, além do cheiro insuportável que tal incêndio produziria, ouviu o ruído da chuva, que, naturalmente, apagaria o nascente incêndio – deixando seus 5 irmãos parcialmente deformados, seu padrasto e sua mãe. Teria que encará-los depois, e essa visão era desanimadora. Não nutria ódio por eles, mas uma profunda vontade de tê-los longe. Deformados seriam ainda mais onerosos. Olhou, novamente, toda família em profundo sono, não o sono dos justos, o sono tranqüilo dos abastados, mas um sono apocalíptico; pois cada dia parecia mais uma guerra do que um mero dia. Pensou em acender velas e colocá-las nas mãos dos dormentes para tornar mais luminosas suas vidas-mortas ou mortas-vidas.

Uma vela apaga-se facilmente com um suspiro. A vida humana é consumida como a parafina de uma vela ardendo. Pensou que um suspiro, um suspiro fatal do destino, ou mesmo de Deus, havia apagado a chance de ser consumido como uma vela, pois se atribuía apenas o direito de trabalhar, prover o sustento de sua família e não falar muito, ou reclamar, acreditava que tal situação era imposta por forças exteriores, e encarar, diariamente, o olhar piedoso do santo, era uma terrível ironia que suportaria, mesmo não sabendo o porquê de tal imposição, não iria contestá-la.

Seu barraco, de manhã, tinha o estranho cheiro de café, água-ardente, pomadas, que, juntos, embrulhavam seu estômago, tirando-lhe o apetite matinal que tinha antes do estabelecimento, por definitivo, do homem com o qual sua mãe vive. Esbarrou, sem querer, na bíblia aberta no salmo 91, e, talvez por coincidência, caiu nos trechos finais do apocalipse.

Taças. Sentiu sede, assim como a sede que Jesus experimentou na cruz. Bebeu um gole de café morno, antes de pisar para fora de seu quintal e dirigir-se à estação de trem.

2.

Hoje seria dia de pagamento, o que lhe dava a efêmera sensação de descanso físico-psíquico. O balanço do trem, em dias normais, bem poderia ser comparado aos navios negreiros, mas, quando sabia da eminência de seu pagamento, seu balanço tinha o delicioso balanço das gôndolas vienenses. Ao chegar à construção onde trabalhava como auxiliar de pedreiros, notou uma movimentação estranha, havia pessoas estranhas em seu local de trabalho; um homem de terno, perfumado, saía de um belo carro estacionado do outro lado da rua, e juntava-se aos outros estranhos. O que pretendiam aqueles homens ? Demiti-los? A sensação de uma demissão lhe causara uma ambígua sensação similar à que provou ao pensar no incêndio de sua casa – mas, se houvesse incêndio ou demissão, onde (e do que) viveria? Achou mais prudente não pensar no assunto, passou longe dos homens reunidos próximos à pequena construção onde faziam suas refeições. Seus colegas de trabalho, todos pedreiros de profissão, efusivos desde a manhã, cantando, gritando, falando obscenidades em tom alto, estavam, também, por causa dos homens reunidos, apreensivos, comunicando-se por olhares, cochichos e pequenos empurrões. A visita desses cavalheiros teve o poder de calar seus colegas de trabalho, o que lhe fez pensar que seria um dia ainda mais agradável do que todos os outros.


Na casinha onde faziam suas refeições, já na hora do almoço, todos os autorizados a realizarem o almoço em primeiro tempo, começaram a tecer especulações sobre a vinda dos homens de terno. ‘Marco, você sabe de alguma coisa?’. ‘Não, não sei’. ‘Posso ficar com um pedaço desse seu bife?’. Poderia não dar o bife para seu companheiro, mas sabia que, lhe dando, teria o silêncio do loquaz pedreiro que se punha a imaginar a repentina visita. Os homens de terno, depois de sua saída para almoço, que, aproximadamente, durou 2 horas, voltaram, para depois, definitivamente, partir, deixando-os ainda mais curiosos.


Já estava com a pele coberta de cal, esbranquiçada, o que fazia seus amigos zombarem do contraste de sua escura pele negra com o branco da cal, dando-lhe apelidos pouco convenientes. O que não irritava em si, mas o tom gritante e brusco que eram feitos. Havia, entre eles, dois pedreiros por quem cultiva certo respeito; os dois, além de sérios, contavam-lhe histórias sobre as prostitutas do centro de S. Paulo, sobre preços, sobre a tarifação, sobre como escolhê-las, como diferenciá-las de um travesti e até como pechinchar! Explicaram-lhe, os dois, que as prostituas mais baratas são as melhores e que não há frescuras com elas. Mostraram-lhe, também, que as prostitutas caras, além de frígidas, não faziam, facilmente, as mesmas coisas que as baratas faziam. A despeito da feiúra e repulsa que uma puta barata pode causar, ensinaram-lhe que não se devia ater, por muito tempo, no rosto delas, sob a pena de perder a ereção.

3.

Já tarde, ansiava para pegar o seu pagamento. Recebeu o dinheiro em um envelope branco amassado. Desconfiava sempre da quantidade do dinheiro que ali estava depositado; mas, por precaução (e vergonha), evitara abri-lo diante de seus patrões.

Dentro do ônibus parado em um engarrafamento, pensou, novamente, em sua mãe moribunda: nas religiões que se sucederiam ano após ano; em seu padrasto bêbado, fétido; seus irmãos sujos, maltrapilhos; os remédios, as garrafas de cachaça e dízimos. Lembrou-se de seus amigos, que já contavam experiências sexuais. Contavam-lhe sobre seios, coxas, pernas, orelhas. Diziam sobre o cheiro das mulheres. Detalhes sobre posições. Palavras. Gestos. Já estava cansado de, quase diariamente, masturbar-se e levantar tijolos. Via os carros enfileirados, inertes, buzinando. Os homens esbravejam. O sol se punha no horizonte. O cheiro do suor. Homens desabotoavam alguns botões de suas camisas. Pêlos apareciam. Axilas. O batom das mulheres já não tinha vermelhidão. Eram bocas esmaecidas. Gritou dentro de si: ‘é hoje’. Saiu apressadamente do ônibus, esbarrando nas pessoas, para ir à rua.
Na primeira padaria pediu um copo de conhaque. Bebericou-o. Quase desistiu de terminá-lo. Teve vergonha de não continuar e decidiu, de um único gole, tomar toda a bebida. Perambulou pelo centro da cidade. O efeito do álcool estava surtindo alguma mudança em seu comportamento. Foi até o meretrício, onde podia observar uma mulher que pudesse desvirginá-lo. Olhou-as rapidamente. Decepcionou-se. A maioria era de péssima aparência. Se não fediam, usavam perfumes ainda mais torpes. Algumas tinham dentes de ouro. Outras não tinham todos os dentes. Metade delas tinha pernas grossas, quase bestiais. Caminhavam pesadamente nas esquinas. Peitos que caiam.

Murchos e já anunciando estrias. Não queria concebê-las nuas. Muito menos – mesmo animado momentaneamente pelo conhaque – tinha vontade de se aproximar. Ouviu um homem negociar o preço e percebeu que a quantia era barata para o valor de seu salário. Poderia ludibriar sua mãe e afirmar que havia recebido um salário menor nesse mês. Nesse instante teve medo de contratar um serviço de um travesti, o que lhe fez apertar o passo e sair rapidamente daquele lugar.

Sentiu-se com uma ilha, circundada pela feiúra e fedor por todos os lados. Não haveria belas mulheres no mundo? Não haveria cabelos lisos, claros, unhas limpas, pernas suficientemente grossas sem bestialidade? Colos ebúrneos? Vozes polidas? Perfume?


‘Na Augusta’, pensou. Sim, tinha diante de si a solução e problema, cuja equação jamais poderia resolver: uma noite com uma prostituta deste nível iria lhe levar todos seus rendimentos, obliterando, então, todo estoque de pomadas, remédios, garrafas de pinga e alimentos para sua mãe, padrasto e irmãos. Como poderia encarar Santo Expedito? Como poderia ver as chagas de sua progenitora. Seu padrasto estaria longe do fétido odor dos bêbados? Enquanto pensava nas inúmeras possibilidades, desfavoráveis e favoráveis à sua causa, viu-se diante de mais bela mulher que podia ter diante de si: canelas finas, coxas devidamente talhadas sem a bestialidade e a excessiva magreza; olhos azuis, cabelos castanho-claro; esmalte delicado em dedos pontiagudos. Percebeu que a pequena beldade se aproximava, acompanhada de uma outra mulher. Elas o olhavam. Tinha vergonha e curiosidade, o que lhe fazia desviar o olhar e focar novamente em seus corpos. Rindo elas tocaram em seu braço ‘está perdido?’. Balbuciou algo que não poderia ser definido como ‘sim’ ou ‘não’. Não sabia como lhes perguntar o ‘preço’. Não sabia o que dizer. Se as ofenderia. Se poderia ser recebido. Estavam sorridentes diante de si, mas não as entendia. Suado e esbranquiçado pela cal, parecia um andrajoso mendigo. ‘Gostou de nós?’, perguntaram. ‘Sim.. errrr, qunt.. ‘ Antes de terminar a frase, a mulher dos dedos pontiagudos dizia ‘os negros tem o pinto muito grande... vou cobrar mais caro de você’. Sua amiga soltou uma discreta gargalhada e terminou ‘por isso é que eu vou dar um desconto pra ele... não agüento mais esses brochas, executivos do pau pequeno’.

Antes de gozar ele conheceu o paraíso por cinco minutos.


Thiago Cardoso

Réquiem para a Inocência

A lua estava magnífica. A escuridão pontilhada do céu se rendia a um halo azul, que brilhava, hipnotizante. Havia uma camada de vapor inebriante no ar. Enquanto a luz incidia em tons azuis e cinzentos sobre as formas e curvas que despontavam da penumbra na sacada, Rose inspirava a atmosfera da noite. Relaxando aos poucos sobre a espreguiçadeira de vime, a mulher puxou os cabelos castanhos, reconfortando-os sobre os ombros e parte do encosto. O olhar à lua esplêndida foi baixando até que contemplou cada vinco, cada curva e cada minúsculo pêlo do abdômen, brilhando soturnos, como a relva orvalhada numa madrugada fria. A temperatura amena daquela noite não abalou a sua naturalidade na sacada; sentia-se viva, entregue nua ao luar, enquanto uma brisa gostosa vagava de vez em quando pela superfície da pele, causando minúsculos arrepios. Ergueu um pouco as pernas, vislumbrando o corpo belo e liso, a pélvis jovem, há muito pouco tempo maculada. Achava-se linda como nunca, via-se naquele momento como uma escultura grega exposta à iluminação divina, invejada por uma Afrodite incapaz de provocar tumultos sobre a Terra. Quisera Rose que sua vida se contivesse neste quadro quase mitológico de beleza e juventude, incapaz ainda de se misturar às tantas diferentes figuras humanas que com insistência poluem o ideal do Absoluto.

Ao lado da espreguiçadeira, descansava um papel de carta dobrado sobre um banco de madeira. Rose deslizou o braço até o objeto e, com a ponta dos dedos, o trouxe até seus olhos, focando-o como se fosse agora reler tudo com mais atenção, mesmo a minúcia de uma vírgula sendo perscrutada com energia. Se daquele corpo banhado pela luz da noite parisiense emanava uma lascívia tão plena e aparentemente tão segura, dos olhos raiavam archotes azuis de uma angústia contida, auto-piedosa e infantil. O olhar, ainda que doce, balançava pra lá e pra cá com força e perplexidade, contrastando de maneira atroz com o ideal helênico ali formado. Era como se Zeus pusesse a deusa à prova de sua própria magnitude humana, sem a qual jamais poderia constituir-se no inconsciente dos homens, transcendentalíssima. Você é uma dádiva da natureza, assim lhe dizia o autor da carta, diversas vezes, sentindo sua respiração nervosa, apaixonada.


“Querida Rose,

Hoje eu finalmente consegui meu papel e minha caneta, que há tanto pedia para a segurança. Está certo que eu não fui o homem mais humilde do mundo quando o fiz, mas, convenhamos, eu sempre acreditei que a piedade dos homens aumentaria num ambiente lúgubre como este. Talvez meu erro seja este; acreditar que a piedade sequer seja passível de se manifestar aqui, que dirá mensurada. Foi Royenne (lembra dele?) quem me disse uma vez que a pena só pode vir acompanhada de temor, temor de que algo semelhante ocorra para si. Rose, é incrível o que fizeram com estes soldados, sim, soldados, porque é assim que convém chamá-los. O Estado de Medo é tão bem sistematizado, tão bem executado, tão direto ao ponto ótimo que ele é capaz de despertar todos as manifestações contrárias ao que se esperaria. Quando o medo desperta a frieza, quando o medo desperta a indiferença, quando o medo desperta a racionalização de todas as coisas é porque, de fato, o trabalho de dogmatização foi muito bem feito (o “bem feito” aqui com um significado muito diferente, totalmente contrário ao que uma vez lhe ensinei, Meu Amor).

Mas dessas coisas todas já falamos, e me basta ter repetido as vezes que já repeti em nossas proveitosíssimas tardes no Memorial, minha linda Rose. Venho, na verdade, por meio desta, dar meu Adeus definitivo, e, quando você estiver lendo esta linha, espero que nossas mentes ainda possam estar conectadas como sempre estiveram. Oh, Rose, eu sinto tanta falta sua. Desculpe pelo borrão, mas, como já lhe falei, esta foi a única e fortuita folha de papel que eu poderia ter recebido aqui nesta cela. Quanto ao meu ato falho, tenho certeza de que não preciso explicar a razão.

Sinto uma dor aqui dentro e uma ansiedade que jamais senti nestes 33 anos de vida. Já corri por todos aqueles lugares e já fiz todos aqueles salvamentos que lhe contei tantas vezes, e nunca meu coração esteve próximo desta força descomunal com que bombeia agora o sangue do meu corpo, cheio de um último baque de vida realmente desfrutada. Não me é possível contar nos dedos das duas mãos as vezes em que senti o bafo ardente da morte, e, ainda assim, cada uma delas jamais seria capaz de superar a intensidade vivida em nossas noites à sós. Não estou sendo um tanto repetitivo e prolixo por acaso, minha amada. Perdoe-me por isso, mas é minha última mensagem e o seu último olhar pra dentro de minha alma. O que não se pode ver nos olhos pode se captar na palavra, e agora é justamente isso que me falta. É tanta coisa que gostaria de dizer, somado à falta de um método de edição mais econômico, que minhas últimas palavras soarão exatamente como minhas últimas palavras, como se você agora pudesse me segurar agonizante em seus braços, como nos filmes mais românticos e trágicos. Mas não é o conforto dos seus braços que agora me sustenta. Não que esta cama seja ruim, sabe, amontoando aqueles dois lençóis grossos que me deram até que dá pra fingir, quando fecho os olhos, que ainda descanso em casa. O cheiro é que é terrível, lembra muito o almoxarifado da Dona Marble, mas eu já me acostumei a respirar pela boca desde o dia em que pus os pés aqui. Só pode ser ironia que minha morte venha justamente pela inalação. Mas é assim que a maioria dos detentos aqui preferem que se dêem suas condenações. Talvez eles tenham a ilusão de que é possível morrer sem um mínimo de agonia derradeira. Eu não acredito nisso, você sabe. Lamento, na verdade, que haja tanta covardia mesmo quando seus dias, seus minutos, seus segundos já estão contados. Não falei antes do temor e da piedade? Pois a covardia só pode existir onde existirem ambos, e os três só onde não se é possível prever o futuro. Engraçado, agora, falando assim, até me sinto um tanto privilegiado. É aqui neste lugar que o indeterminismo encontra seu fim, percebe? É aqui que uma parte da filosofia encontra seu grande desafio. Não é apenas nossa condição de seres mortais que passa por um questionamento altamente remissivo, mas também nossas atitudes mundanas, nossos caminhos, nossas experiências. Não pense que eu nunca imagino que você deva se culpar por este meu destino, minha linda e pobre Rose; e este seu sentimento é algo que temo desde que vislumbrei o seu último e doloroso olhar de desespero enquanto fechavam as portas do camburão. No entanto, peço-te, por favor, que contenha pensamento tão abjeto e ao mesmo tempo tão ingênuo, ainda que eu saiba ser essa uma tarefa extremamente difícil, quase impossível para uma mulher, sempre tão passional; que dirá para uma menina. Engraçado eu pedir que se rejeite justamente o comportamento que mais contribuiu para arrebatar o coração deste pobre homem aqui. Oh, arrebatar, era essa a palavra. Se eu pudesse resumir esta carta em uma palavra tão importante, se eu pudesse transparecer todos os sentimentos que perspassam minha alma neste momento, eu resumiria tudo em: Arrebatamento. Amor que arrebata, Verdade que arrebata, Condenação que arrebata – e a Morte, que por si só é a epítome do Arrebatamento.

Quisera eu não precisar falar d'Ela neste momento, mas é que da própria folha em que escrevo emana um odor funesto, quem sabe imperceptível se nela estivessem escritas palavras auspiciosas vindas diretamente do Juiz-Mestre, quem sabe um pedido de desculpas do Gabinete. Ora, Deus é um sátiro, só pode ser isso... Meu tempo neste mundo acabando, minha alma já em uma atmosfera de despedida, e, neste instante, eu reservo em minha mente, até mesmo em meu coração (e me dói dizer-lhe isto) mais espaço para o Príncipe Negro do que para você, Deusa dos meus sonhos.

Oh, é inevitável, meu amor, me perdoe. Você nem bem possui ainda uma noção exata das jurisdições dos homens (assim o penso, e de toda forma posso estar cometendo o mesmo erro de julgamento dos outros, principalmente dos que me lançaram à Ela), nem mesmo é capaz de abarcar na sua doce juventude a extensão, a influência e a grandeza das incertezas amorais e imorais de nossos tempos. Tudo o que lhe é possível de ser explicado eu já cheguei perto de explicar, lhe garanto. Você não está assistindo a uma contradição de promessas – as minhas contra as deles –, embora, com certeza, assim deva lhe parecer. Como eu já havia lhe dito diversas vezes, aguarde pelas explicações mais estapafúrdias. As palavras, feias, desconexas e até mesmo exageradamente eruditas e solenes para um mocinha soarão como um desagravo de uma situação julgada inevitável, para eles inevitável desde a origem do Universo. Você perguntará; é isto a Justiça? Tanto importa o que eles irão retorquir, mas a sua tréplica será a mesma, saltitando da esfera mais fundamental de sua essência, que é a mesma minha e, sim, a mesma deles, pois que a Justiça ultrapassa todas as barreiras do tempo, que dirá das idades (lembra-se?) Isto não é necessário eu lhe repetir.

Será na meia-noite de terça-feira que serei extinto, e então, é forçoso contar-lhe, minha bela Rose, algo ocorrerá dentro de ti. O tempo irá parar, e tudo ao seu redor irá escurecer, como se o silêncio no espaço engolisse o próprio coração, que já nem sabe porque ainda pulsa. Eu sei que o é assim, pois já senti o mesmo, e não o foram poucas vezes, como sabes. Mas você resistirá, minha anja. Você se encontrará como a criatura mais solitária do Universo inteiro por milênios – embora não dure isso –, mas você resistirá. Você resistirá porque já terá lido minha carta e estará atenta ao seu redor; não com seus belíssimos olhos, mas com sua consciência. Você saberá que minha ruína post-mortem não será exclusividade sua, mas será partilhada por cada um daqueles que estiverem assistindo à minha sentença (por que eles fazem isso, Rose? Quando o fiz, também não soube dizer, e até hoje não compreendo). Cada uma daquelas pessoas, homem ou mulher, criança ou adulto, também mergulhará em seus próprios abismos, experimentarão suas próprias micro-ruínas. Como exemplo, eu continuarei vivo. A Morte irá lhes cuspir na cara como um palhaço negro. A culpa jamais encontrará sua causa física – é possível que os carrascos, soldados últimos desta Máquina da Injustiça, sequer realizem que sou um homem –, mas tomará todo o recinto. Quando a Ordem for mais uma vez corrompida, esta sombra dominará a câmara muito mais rápido do que o gás, e será muito mais fatal, muito mais imediato e ao mesmo tempo muito mais residual. Ela o será para sempre, num movimento eternamente revolucionário, conflagratório. Do ser ao ser. Do homem ao homem. Não sou eu que o desejo. É a Natureza. Se como defesa ela não serve ao homem (este homem de hoje), que sirva então como lição. Não sou um defensor do hedonismo, oh, jamais seria, Deus me livre. Não julgue-me como um sacripanta do prazer, aproveitador das sensações. Não julgue-me como vingador, mas como uma bilionésima parte de um mártir histórico, ético e moral. Eu sou o próprio Karma em símbolo. Que seja assim, então, e que em outra realidade o Homem aprenda a aceitar a si mesmo e aos seus instintos.

Oh, pequena Rose, me perdoe. O que acabo de fazer?

Te amo,

Pela eternidade,

M. C.”


Era uma tarde de quinta-feira muito fria quando Rose empertigou-se no sofá, ouvindo os passos serenos e resolutos da velha Marie-Glesson. A senhora sentou-se à sua direita, sem proferir uma palavra sequer. Por um longo minuto, ficou observando os olhos úmidos e acanhados da pobre Rose. Marie parecia não se importar com absolutamente nada. As maçãs do rosto estavam rijas, mas logo sua feição foi se encrespando, lentamente, até o ponto de ebulição.

Por que você insiste em ler esta carta, menina, perguntou ela. O que é que você procura? Uma despedida, um alento, uma desculpa, um sentido? Qual é o propósito disso tudo? Qual é o seu ganho com esta situação? Você só tem a perder, aliás, você só perdeu. Não bastam as coisas já serem tão difíceis como sempre foram? Por que vocês, pessoas, nunca descansam, nunca suspendem esse fluxo teimoso de julgamentos e de desejos? Vocês acabam perdendo a noção da própria lógica. As afeições e os juízos morais se misturam e se confundem de uma forma impressionante. Ao mesmo tempo tão grande coração, ao mesmo tempo tão egoísta. Ao mesmo tempo uma mulher perdida em uma paixão impossível, ao mesmo tempo uma menina esquecida junto à contagem ordinária dos anos. Isso não é suficiente para você?

Pára. Escute-me, sua tonta. Quando foi que você esqueceu que tem apenas treze anos? Ora, você não pode agir assim, pode? Não adianta às pessoas que elas comportem-se como animais; sempre, sempre lhe disse isso – diabos, é exatamente isso que você deveria ter aprendido, pois é isso que lhe foi ensinado neste lugar. Não importa nem como as coisas são, nem porque, mas o que fazemos a partir delas. Está certo que, de alguma forma, suas ciências desenvolveram-se muito habilmente, e você é capaz de ludibriar alguns tolos quanto à sua real identidade. Mas o Sistema está além disso, está além de você, está além de qualquer cenário que você tenha imaginado em suas fantasias pueris com aquele homem e com qualquer outro homem. Não, eu não quero saber se você o amava ou não, mesmo porque essas declarações não valem nada para Eles. O que você faz ou deixa de fazer para si própria pode não ser da minha conta, muito menos da minha responsabilidade. Vocês ganharam a independência há mais de um século – embora, eu deva admitir, dada sua condição, que um novo preceito deveria ser aberto. Mudaram suas obrigações, mudaram suas esferas de ação política e até mesmo foram mudadas leis que jamais lhe diriam respeito, mas que, por conveniência política, ultrapassaram o senso lógico comum.

Por que você me olha desse jeito? A Natureza lhe deu o direito de ser como você é, mas não é Ela quem rege os homens. Não agora, e você sabe muito bem disso. Não chore, não ouse chorar. É por sua causa que um homem vai morrer amanhã, e nada pode apagar este fato por si. A Justiça é muito mais velha do que você. Então, se você tem o destemor de quem vivesse numa anarquia, se você se dá ao luxo de querer agir sem compromisso com as conseqüencias, demonstre um mínimo de honra e coragem face ao seu destino. Melhor, o destino de outro. Sim, um outro. Cale-se, idiota, eu já lhe disse que esses predicados de nada valem, nunca valeram. Não há sociedade que se baseie nessas particularidades que vocês, crianças, tanto valorizam. Não há maneira de haver Ordem sem um encontro com os valores mais fundamentais da vida humana, Rose. E o que é que você não compreende disso tudo? Não conseguiria ser mais clara com você do que isto. Escute, eu não quero saber o que aquele homem pensa. Ademais, eu não daria atenção àlguma à carta escrita por um moribundo, fosse quem fosse. Você sabe que, apesar de tudo, sinto muita pena dele, e este sentimento me basta. Um bombeiro deveria merecer uma morte mais digna. E quando digo isto, não estou preocupada com o método utilizado, mas sim com o fato decisivo para tal sentença.

Ainda não consigo acreditar... simplesmente não consigo acreditar. Quando penso em você, já sei exatamente todas as razões implícitas para uma decisão tão estúpida, e acabei de referi-las quase todas. Porém, quando penso neste homem... Ora, não fale esta palavra perto de mim, não a repita mais uma vez sequer. Não se atreva, Rose. Desde o dia em que soubemos de sua anomalia, eu prometi a Deus dar o mundo para que você se desenvolvesse da melhor maneira possível. E você não era feliz, Rose? Você não era? Você não tinha uma vida pela frente, não tinha sonhos? E o que lhe resta agora, Rose? Oh, Deus, por quê...


Quando o primeiro zero da meia-noite de sábado transformou-se em um, aquele homem já estava morto. Ele não proferiu nenhuma última sentença, nenhum discurso final, nem agonizou, e seu cadáver jamais sofreu espasmo algum. Certas pessoas chegaram a dizer que ele não esperava nada do outro lado. A maioria delas desejava, posto assim, que o homem ardesse no mais lívido Inferno. Quanto à anomalia de Rose, ela não foi totalmente controlada, mas pouquíssimos casos se repetiram nesta Era, enquanto que aquela seria a última condenação capital por pedofilia sob tal Constituição.


Renan Santos

Nós, o banquete

Roger era canibal desde os vinte anos, quando descobriu o sabor esplendoroso de uma bela carne humana. Sua visita, Ana Lúcia, não tinha conhecimento disso, pois que recém chegara ao bairro e já fora logo aceitando o convite de jantar do novo vizinho, um homem alto, belo e solteiro. Eram dez da noite quando a campainha tocou. Roger recém havia desligado o forno. Pôs a carne já devidamente fatiada sobre a mesa e correu para atender a porta. Cumprimentaram-se, ambos ainda um tanto sem jeito, banhados numa atmosfera de flerte e novidade. Ana Lúcia elogiou o arroz com legumes e a carne de porco ao molho de laranja, sem jamais desconfiar que estivesse degustando os músculos de um homem chamado Elias Tobán, um chileno gordo, velho conhecido de Roger.

Conversaram sobre os arredores, sobre comidas e enfim sobre si mesmos.

— E então? O que realmente te traz para estas bandas? – perguntou Roger, com um olhar cheio de calor, terminando de engolir o naco fibroso. A mulher sorvia o vinho com rapidez.

— Ah, mudanças... Mudanças, sempre elas. Sempre fui uma mulher muito independente e bem vivida, uma metamorfose... uma metamorfose ambulante. Saí de casa muito cedo. Logo que me formei, coloquei minha pastinha debaixo do braço e me mandei pra São Paulo. Lá trabalhei em cinco agências. Anos depois fui pro Rio à convite de um amigo, diretor de uma firma de design, e hoje estou aqui.

— Tu és designer...

— É, agora largando um pouco essa função, finalmente. Estou vendo o que se pode tirar de veia administrativa deste corpinho. Entrei num negócio de webdesign, com dois amigos gaúchos que fiz no meu mestrado em Sampa.

— Ah, tu tens mestrado... Que legal. Então gostas de viagens e de estudo.

Ana sorriu, encabulada com o olhar bajulador do homem.

— Olha, nunca fui de muito estudo não. Mas sempre fui apaixonada pela minha área, e por isso não parei de me aprimorar. Acho importante, não é?

— Claro. Sem dúvida – Roger riu de um jeito forçado, desconcertante. O rosto perdido da sorridente Ana aguardava uma resposta – Desculpa, é que tu tens mesmo cara de designer. Impressionante.

— Ah, é, é? E qual seria o perfil, posso saber? Não, na verdade estou brincando, eu sei bem como é o estereótipo. Um visual moderno, mas sem exageros típicos de publicitários e artistas, mais clean. Uma independência exibida, um tipo de orgulho diferente, adorando falar de suas mudanças. Ah, claro, um cabelo não muito longo, repicadinho, que nem o meu...

Caíram na gargalhada, cada vez mais à vontade. Depois houve um breve silêncio de olhares oblíquos, rompido por Roger:

— Sabe, eu tenho um lado artístico também.

— Ah, tem? Pois devo te dizer que assim, de cara, você aparenta um advogado, administrador ou coisa do tipo. Que foi? Estou falando sério! Não que você pareça muito certinho, não tem esse ar não. Mas, a julgar pela sua casa, pelas suas decorações, até mesmo pelas descrições que fez dos teus vizinhos, parece um homem do tipo “clássico”, se isso não te ofende.

— De forma alguma. Considero até um elogio.

— Ah, mas você sabe, eu sou designer... Posso não ter a visão mais neutra de “estética pessoal” – disse a moça, com um riso cada vez mais solto, o vinho aos poucos tomando-lhe as rédeas – sabe quantas vezes aceitei um simples jantar a sós como programa para a noite? Uma vez, com um ex lá de Belo Horizonte.

— Ele era clássico?

— Não exatamente, ele era conservador mesmo. Carola, reacionário. Um porre em determinadas ocasiões. Mas era uma gracinha e tinha um coração enorme.

— Tu não pareces ser o tipo de mulher que dê muita bola para algo como o espírito político. Eu particularmente louvo isso. Por mais idealistas que sejamos, no fim das contas o que sempre nos importa é a sensação primária das coisas, do mundo, das pessoas.

— Ah, na verdade, eu sou sim idealista. Mas, se formos o tempo todo tão exigentes, ou tão profundos nas nossas críticas, por mais que elas sejam verdadeiras, nos cansaremos rapidinho desse mundo – a moça apoiou o queixo sobre o punho, contemplando a grande janela da sala. Entre as cortinas amarronzadas, podia ver o reflexo da lua nas folhas das árvores.

Roger observava atentamente cada movimento do rosto da morena. A língua se mexia dentro da boca cerrada, sedenta. Seus olhares atentos se chocaram mais uma vez. A mulher prosseguiu:

— Talvez eu tenha encontrado um jeito de ser idealista na minha especialidade. Ah, já faz tempo isso. Confesso que hoje em dia dedico muito menos atenção à arte em si.

— Ora, que pena. Engraçado que quanto mais passa o tempo, mais me admira a beleza, a qualidade estética, tanto da natureza de Deus (perdoe-me se você for atéia) – ao qual ela fez uma deferência afetada – quanto da natureza do homem. Às vezes me sinto uma criança diante de um quadro, de um filme, até de uma música. Da mesma forma que os gregos, pra mim o justo é exatamente o que é belo. Por isso, no fim, tu tens muita razão quando me chama de clássico. Os costumes e a maneira de se lidar com o mundo nada mais são do que um reflexo da visão estética que a pessoa tem, não achas? Jamais apreciei Picasso e amo as obras de Rembrandt. Não tenho interesse algum em Nova York e meu sonho é morar em cidades como Glasgow ou Roma.

— Você tem razão. Isso basta pra se entender as atitudes de uma pessoa. Meu Deus, que curiosidade! Afinal, o que você faz da vida, homem?

Roger estufou o peito com um olhar blasé, para ver se arrancava-lhe mais risos.

— Sou, ou fui fotógrafo – ela arregalou os olhos – Bem, há muito tempo que não pratico a fotografia como deveria, e agora tenho pensado até em me dedicar à literatura, tentando me concentrar como posso. Porém, ainda amo a fotografia acima de tudo.

— Nossa, e eu arriscando até advogado. Agora entendo plenamente o papo sobre arte. Juro que você não parece escritor, que dirá fotógrafo. Estes não costumam ter um cabelo ousado? Usar colete?

— E um brinquinho.

Riram muito, o entusiasmo dela ainda muito mais efusivo. As longas pernas já se moviam com nervosismo debaixo da mesa, bagunçando a seda negra. Roger se levantou da cadeira estofada, avisando que iria pegar mais uma garrafa de vinho, e Ana Lúcia já imaginou o perigo que trariam mais duas ou três taças. Contudo, ela estava estranhamente mais do que disposta ao que quer que viesse daquele homem, que se movia e caminhava com a impavidez do bronze esculpido. Contemplou demoradamente as pernas, as costas e as nádegas de Roger conforme ele se dirigia ao bar ao lado da cozinha. Piscou os olhos com rapidez, surpresa, quando se deu conta de estar mordendo o lábio inferior. Achou graça. Há muito tempo não se sentia tão jovem, tão solta de amarras. Talvez o tempo vivido nas outras capitais houvesse lapidado uma rocha distinta. Porto Alegre era terreno novo, e o tal fotógrafo-escritor, com apenas uma hora de conversa, se mostrava totalmente diferente de todos os homens que conhecera. O mistério tomava cores da irresponsabilidade sem culpa.

Roger colocava o vinho sobre o bar, sacando o abridor, enquanto outros pensamentos borbulhavam em sua mente.

— Que tapado! Esqueci da sobremesa! – bradou, contemplando os pés inquietos de Ana Lúcia; do ângulo de Roger, eles margeavam o pilar do balcão como serpentes. Do ângulo de Ana Lúcia, o calor da luz do bar incidia sobre as mãos fortes de Roger.

— Ah, não se importe com isso! Mas que eu já estou sentindo falta de um docinho, isso estou. Adoro chocolate, viu?

A voz vacilante da morena soava-lhe deliciosa. Um brilho cor de vinho luziu nos dentes do homem.

— Precisamente o que eu tenho aqui – um minuto depois de algum ruído na cozinha, Roger voltava para a mesa ostentando o vinho e uma taça larga de alumínio, cheia de morangos cobertos por uma calda grossa de chocolate, e entre os dedos duas barrinhas de chocolate – Vê o que tenho aqui. Será que saciamos teu desejo?

Ana Lúcia arregalou os olhos, segurando o riso sem graça.

— Nossa. Com certeza. Hm, adoro morango, há muito tempo não comia. Está doce que é uma maravilha! Insisto na sua classe. Sigo me perguntando o que há de excêntrico em você.

Roger arqueou as sombrancelhas e pareceu relaxar-se com ainda mais vigor, como se finalmente tivesse surgido a deixa esperada. Ana Lúcia lambia o chocolate das pontas dos dedos.

— Todos temos excentricidades – disse Roger – Na maioria dos casos, o superego simplesmente dá algumas concessões, cheias de capricho. Até o ponto em que nos vejamos num conflito de personalidade. Ou de simples atitudes. Dentro dos costumes desta sociedade, claro.

— Ou talvez a id não seja poderosa o suficiente. Chocolate com psicanálise? – suspirou Ana Lúcia, com um fastio repentino, extremamente afetado. Estava brincando, ou queria parecer estar brincando. Roger não; ele era resoluto no prosseguimento do assunto e a observava cada vez mais interessado.

— Nosso desejo mais profundo nunca é poderoso demais. É tudo uma questão de equilíbrio de forças dentro de nossas mentes. Até que ponto a vontade é sincera, e até que ponto a sinceridade é arbitrária? – Roger fez uma pausa e, ainda com a taça de vinho na mão, se inclinou lentamente sobre a mesa, adentrando os olhos reluzentes da morena – Eu, por exemplo, tenho certeza de que tua mais pura vontade neste momento é ir pra cama comigo – falou, peremptório, silencioso, quase chiando.

Não houve reação. Os globos de Ana Lúcia faiscavam como se a mesa estivesse tomada por velas, e uma gota de ansiedade (ou de medo, não podia distingüir) percorreu-lhe o rosto. O sorriso não lhe deixava os lábios úmidos. Que homem era aquele? As bocas vacilaram a poucos centímetros de distância, e um vapor emanou entre as peles saturadas da atmosfera sensualíssima. Roger enfim recuou, e Ana se segurou como pôde para não morder o lábio, enquanto um vento frio percorria sua espinha. Os olhos não se desgrudavam. Nunca um homem estivera tão perto de sua boca sem tocá-la. Que fenômeno se passava? Um espasmo da última conversa ainda exalou dos lábios trêmulos de Ana:

— Sem dúvida, ainda há um universo de coisas a se descobrir em ti...

Roger bebia o vinho aos poucos, degustando-o de uma forma virtuosa, num espírito contido, quase franciscano.

— Então perderíamos toda a graça de nosso jantar, ou mesmo de nossas vidas.

Ana via agora um estilo que nascia de lugares ainda mais profundos do que pensara. E o homem mais do que nunca sabia estar no poder. Isto era fatal. Mas não podia evitar.

— Quero te descobrir tanto quanto tu queres a mim. Não é assim que vivemos? Não são as expectativas que nos fazem seguir adiante? Muitas vezes não sabemos por que temos medo de determinadas coisas, ou nojo, ou o que quer que seja. Se eu te perguntasse agora: “tu aceitarias experimentar coisas que jamais imaginaste que experimentarias?”, o que é que tu responderias?

Ana Lúcia jogou-se no encosto da cadeira novamente. O seu sorriso ficava cada vez mais irresoluto, na mesma proporção do brilho de curiosidade em seus olhos. O jogo da dúvida, da sedução e da filosofia do segredo se embaralhavam de uma forma tão prazerosa quanto o próprio chocolate que restava sobre a língua. Homens e mais homens duros e sem sentido trespassaram a sua mente, como num fundo opaco. Sem hesitar, a morena derramou mais vinho para dentro da taça e bebeu tudo num só movimento, soltando um estalo de alívio no ar, saciada. A cabeça começava a balançar mesmo que parada, e as luzes da sala e do bar foram ficando mais brilhantes. A boca de Roger era um fio vermelho em meio ao paraíso dourado.

— O que é que tu responderias? – insistiu ele, segurando com leveza a mão dela, a expressão dura do rosto velando uma grande expectativa pela resposta.

— Eu não tenho nada a perder, tenho?

— Jamais. Só temos a perder quando nos arrependemos do que não aconteceu.

— Tem razão. Eu quero.

Roger abriu um largo sorriso, o coração bombeando sangue por detrás do véu de segurança. Estava em êxtase. Aproximaram seus rostos e estalaram os lábios, Roger recuando antes que o beijo se aprofundasse, como tanto Ana Lúcia esperava. Roger teve dó da sua expressão carente e ao mesmo tempo insaciável, mas é que os objetivos eram por demais superiores àqueles. Alguma forma de compensação pela vida subsistia na sua mente, alguma forma de doutrina que lhe apetecia transmitir a uma pessoa que num instante lhe parecia tão íntima. Roger tivera poucos amigos na vida, e alguns deles acabaram como banquete. Isso era extremamente significativo: ele tinha dado parte de uma antiga amizade sua para uma mulher, ela tinha compartilhado de seu prazer e de sua gula, ela tinha engolido a mesma alma que a sua. Bastava que ela aceitasse isso da mesma forma.

Roger levantou-se, puxando Ana Lúcia pela mão. Enredada pelo álcool, ela tropeçou algumas vezes nas sandálias, pedindo desculpas coradas ao homem, que agora mantinha uma postura mais séria. Chegaram à cozinha, e Roger abriu a geladeira, enquanto Ana sentava-se diante da mesa de acrílico, perdida, um pequeno arrependimento já despontando por entre a confusão na sua cabeça. O homem retirou um pote branco de plástico com uma tampa quadriculada vermelha e o pousou no meio da mesa, observando os olhos cintilantes da morena. Abriu o pote, e ali havia pequeninos filetes de presunto. O olhar de “o que significa isso” de Ana logo foi preenchido pela intervenção um tanto nervosa de Roger:

— Não, isso não é presunto comum – mentiu, porque haviam custado três e cinquenta na venda da esquina – Me escuta: quantas dietas uma pessoa tenta a vida inteira, Ana? Quantas vezes te falaram sobre o nojo de moluscos, de cérebro de ovelha, de língua de vaca, ora, se tem gente até com nojo de cebola? Qual é o valor destas coisas? Que são esses costumes, que variam muito além do que se pensa? Tu não sabes mais o que é isto que tem neste pote, e isso te assusta. Não me olha desse jeito, eu sei que o momento não é pra isso, mas pra mim é muito importante, Ana. Tu não sabes o quanto eu busco ensinar certas coisas. Tu não tens idéia. Eu vejo nos teus olhos que tu podes me compreender, eu vi antes e vejo agora. Vamos, Ana, por que tu não provas este minúsculo pedacinho? Só para sentir o gosto, é só o que eu te peço. Por que recuas? Do que tens medo?

Ela o encarava incrédula.

— Tu tens medo é do desconhecido. O que eu tenho de excêntrico é isto, tu achas? Te propor uma situação nova, algo pelo qual tu nunca passaste antes na tua vida? Eu sei que tu és uma mulher preparada pras coisas, senão nem estaríamos aqui agora. Tu, como tantas outras pessoas, não sabes o que é o verdadeiro medo, Ana.

Ana Lúcia se afastou de vez, recuando aos tropeços até a parede oposta. A imagem obscura de Roger crescera assustadoramente diante de si. As pernas da morena continuavam suando por debaixo da saia, só que agora por motivos bem distintos. Não sabia mais o que estava experimentando, e já receava até mesmo por sua vida. Gritou:

— Afinal, o que é que você quer que eu prove?!

Roger fez sinal de silêncio, a paciência visivelmente se esvaindo pelos olhos escancarados. Contido, retirou um dos pedacinhos de presunto do pote e o ofereceu na ponta dos dedos à mulher.

— Eu só quero que tu proves isto. Só quero que tu proves o desconhecido. Tu és capaz de lidar com o que não conheces? Não me parece. Enfim... mais do que pertinente agora é te perguntar o que é que vale mais para ti nas coisas do mundo: o valor da essência ou o valor do nome? Esta é a pergunta de todas as perguntas, Ana.

Uma lágrima rolou pelo rosto dela. Ninguém esperava aquilo. Roger fechou os olhos, decepcionado, balançando a cabeça, relembrando toda a conversa que tiveram.

— Me entristece muito o ato da revelação, a entrega de algo tão estigmatizado a ponto de te afastar da verdade sensitiva. Mas é assim que tem que ser. Isto é carne humana. Carne da tua carne, Ana.

Todas as terminações nervosas do corpo já tão ardente de Ana tilintaram numa seqüência de descargas de terror e repulsa. Desequilibrada, ela foi ao chão, contemplando um Roger ainda maior e mais ameaçador. Num átimo, todo o desejo que durante a janta havia concentrado, carregado pela ânsia do desconhecido e pelo buquê do vinho francês, dissipou-se numa nuvem de vapor gelado de arrependimento e sensação de perigo fatal e imediato. O homem alto, belo, solteiro e inteligente tinha um prazer, uma admiração por carne humana, e isto ia contra todos os seus princípios. Como podia enganar-se tanto com uma pessoa, já havia acontecido antes, mas não de forma tão rápida.

Roger observava com tristeza a morena correr desajeitada até a porta. A imagem dela mudara de forma espantosa. O vestido estava manchado, os cabelos bagunçados, as pernas lanhadas pela ação mais pura da ignorância, e não havia algo mais repulsivo para Roger do que a ignorância e seu imenso poder. Vida triste tinha um homem que via-se obrigado a deleitar-se com o proibido e o desconhecido. Contudo, ambos formavam juntos uma imagem tão excêntrica (era essa a palavra correta?), que por suas próprias condicionalidades justificavam o prazer do canibal. Roger invejava as tribos mais primitivas. Sabia no fundo que seu desejo não era tão puro quanto o deles. Tinha conhecimento de que era ao mesmo tempo diferente e hipócrita quando acusava os costumes, pois que por eles agia como agia. Tanto que não acabava agora com a vida de um ser humano pela simples gula, e sim para manter sua liberdade. “Eu não tenho salvação”, pensava repetidamente nos dias seguintes, cabisbaixo. “Ou são eles que não têm”.



Era uma linda noite de Setembro quando jantava à mesa com seus amigos de futebol. Dificilmente trocavam elogios tão afetados com Roger, mas não paravam de louvar a bela carne de porco. O homem ficou muito orgulhoso, ainda mais por que não esperava que o corpo tão esbelto de Ana Lúcia rendesse lá muito sabor.


Renan Santos

Diário de um morto vivo (Parte II)

Meu primeiro assassinato

O sangue do meu "senhor" - assim é chamado, segundo a milenar tradição dos mortos vivos, pelo vampiro que foi criado ao vampiro que o criou - era e é para mim uma necessidade e uma dádiva da qual eu era o mais dependente dos viciados, o mais escravizado dos escravos.

Ainda assim, ele tirou seu braço da minha boca e impediu que eu continuasse minha alimentação, muito antes de eu estar saciado. Não havia bebido muito mais do que o necessário para ter passado pela transformação. Como resultado, eu me encontrava desesperadamente faminto por sangue, e ele sabia muito bem disso, pois, conforme ele mesmo me disse depois, a primeira fome de um vampiro recém criado é a mais forte de todas.

Mas Gerard, em sua generosidade, ou segundo o seu próprio conceito deformado e cínico de generosidade, não me deixara de todo desamparado. Ele me pediu para segui-lo, pois havia preparado uma surpresa para mim. E assim eu fiz, com a inocência e a confiança de uma criança pequena que acompanha a sua mãe.

Saímos de minha residência e passamos por três quarteirões até chegarmos a um beco escuro, onde costumavam ficar mendigos, vagabundos e outros elementos marginalizados pela sociedade. À noite, porém, era evitada até mesmo por esses elementos. Andamos pelo beco, "mal-assombrado", diriam, não sem razão, até chegarmos a um homem, um pobre diabo que eu não podia ter certeza se era um mendigo ou não.

Ele estava deitado e imobilizado no chão, amarrado e amordaçado. Ao nos ver, ou ver os nossos vultos, já que a claridade era escassa, ele começou a gemer, se debater, e a nos olhar como se implorasse por nossa misericórdia. Gerard olhou pra mim, sorriu e disse: "Vamos, minha criança. Hora de satisfazer sua fome."

Ao ouvir tais palavras, olhei para o homem e o seu olhar era de um completo desespero. Na verdade, seus olhos pareciam pular para fora das órbitas ao sentir a morte cortejá-lo tão de perto. O que eu estava prestes a fazer era horrível, mas na condição em que eu estava, creio que se fosse até um parente próximo no lugar daquele pobre homem, eu teria feito do mesmo jeito.

Sem pensar muito, senti minhas presas crescerem afiadas, obedecendo ao meu instinto assassino. A essa hora, o homem se debatia com toda a força e tentava gritar. Em uma fração de segundos, eu já estava em seu pescoço.

O deleite que eu obtinha através daquele sacrifício fazia eu esquecer todos os dilemas morais e éticos da prática daquele crime. Havia um prazer demoníaco em sentir o seu sangue fluir para dentro de mim, e mesmo ao sentir o coração, antes pulsando descontrolado devido ao pavor, ir reduzindo sua intensidade gradativamente, até cessar totalmente sua atividade.

Quando terminei meu banquete, ou, mais apropriadamente chamando, minha orgia, tinha em meus braços um cadáver que estava no mesmo estado em que Gerard anteriormente havia me deixado.

— Muito bem, minha criança! - era Gerard, bastante satisfeito em assistir minha degeneração - Estou vendo que eu não estava errado a seu respeito. Você será um ótimo vampiro! Formidável!

Eu o olhei e meu semblante transmitia o que eu sentia, finalizado o meu banquete: um misto de profunda decepção e perplexidade.

— John? John, meu amado John! Nós somos o que somos, somos predadores, estamos no topo da cadeia alimentar. Sentimentos como a compaixão não são mais adequados a nós. Deve, por acaso, o predador sentir compaixão por sua presa? Se os humanos não querem morrer, que não cruzem o nosso caminho! Você não é mais humano, portanto não é mais conveniente que fique preso a ideias humanitárias. John, meu querido, vou lhe ensinar tudo o que você precisa saber para ser um bom vampiro. Seremos companheiros por toda a eternidade!

Pensei em dizer algo como "Fico feliz por você ter deixado eu decidir o meu próprio destino", mas contive a provocação em meu pensamento, ponderando não ser prudente verbalizá-la. Limitei-me a sorrir, exibindo uma falsa complacência, da qual Gerard não tinha motivos para suspeitar.

Mas ele havia se enganado a meu respeito. Eu não era o predador frio e desumano que ele havia vislumbrado, a partir da leitura de meus livros que, reconheço, possuem um considerável apelo macabro. Ao contrário, a imagem daquele homem indefeso e apavorado que lutava desesperadamente pela vida, e que mesmo assim eu assassinei covardemente, vem me assombrar todas as noites.

Por quanto tempo terei que conviver com essa lembrança? Temo que nem o passar dos anos e mesmo séculos poderá apagá-la.

Josué

Diário de um morto vivo - parte 1

Londres, março de 1880

O que eu me tornei

Faz exatamente dois meses que minha vida tornou-se um drama quixotesco de dimensões surreais. Não que ela antes tenha sido plenamente satisfatória. Assim é a vida dos seres humanos: ilhas de felicidade em meio a oceanos de sofrimento e tristeza.

Assim era a minha vida também. Há dois meses, no entanto, eu fui definitivamente apartado da condição de ser humano. Sim, é isso, é essa a verdade, por mais inacreditável que
possa parecer. Agora não sou mais um homem: sou um monstro morto-vivo bebedor de sangue ou, como é mais popularmente conhecido, um vampiro.

Tal fato consumado encerra em si mesmo conseqüências devastadoras. Se os vampiros, que até o dia de minha derradeira transformação eu julgava serem meras lendas e superstições de época pretéritas, são reais, o que dizer de outras criaturas igualmente dadas como mitológicas? O que dizer a respeito das bruxas e lobisomens? E que tal anjos e demônios? Fadas, duendes? Já não me espantaria mais descobrir que tudo isso é a mais pura realidade.



Sobre minha transformação

Gerard. Apenas Gerard. Foi assim que se apresentou a mim aquele que me jogou, sem aviso prévio e sem pedir minha opinião, no trágico e absurdo mundo dos predadores noturnos, das bestas sobrenaturais que coabitam o mundo junto às suas vítimas humanas, tais quais lobos em pele de cordeiro.

"Mas por quê? Por que eu?" - foi a primeira pergunta que me veio à mente, logo depois de ter morrido como humano e renascido como um monstro. Eu havia acabado de chegar em minha casa, na pequena cidade universitária de Osford, depois de ter passado a noite bebendo na taberna. Eu me encontrava naquele familiar estado de euforia que somente o álcool pode proporcionar. Não fazia quinze minutos que havia chegado e, estando deitado em meu leito sentindo a cabeça rodar, eis que ouço alguém bater à minha porta.

Cambaleando, me levanto para atender, e talvez por me encontrar sob efeito da embriaguez, não atino com o perigo de receber visitas à noite. Olhando pela janela, reconheci o semblante de um dos boêmios com quem havia estado na taberna, e convenci-me de que não havia motivo para maiores temores. Abri a porta e saudei meu visitante noturno.

— Pois não?

— John Brandom Blair? - responde ele.

— Sim. Esse é o meu nome. Perdoe-me, mas o seu é...?

— Gerard.

— Está certo... Gerard. A que devo sua visita?

— Estive com você na taberna, e...

— Sim, eu me lembro de ter te visto por lá.

— Eu sou um grande admirador da sua obra. Eu tenho todos os seus livros... posso te dizer sem medo que você é um grande escritor e um grande artista. Na verdade, creio eu, o melhor escritor que há nessa ilha.

— Muito obrigado... devo dizer que seus elogios muito me agradam. Porém, devo dizer também que você me tem em demasiada alta conta, e que não sou, portanto, merecedor de tanta deferência. Sou apenas um escritor mediano, jamais chegarei ao nível de um dos grandes como Byron.E nesse momento em particular, sou apenas um bêbado...

— Sua genialidade precisa ser preservada pra sempre, e é por isso que eu estou aqui...

— Bem... creio que, quanto a isso, não está ao meu alcance, nem ao seu, nem ao de mais ninguém. O julgamento que a posteridade fará de mim e de minha obra, se é que farão algum, é assunto apenas para eles.

— John... eu lhe darei toda a eternidade, dessa forma seu talento será preservado para sempre. A oferta que eu lhe faço é a mais generosa que alguém algum dia poderia lhe fazer... Por que não me deixa entrar pra que eu lhe explique com mais detalhes?

Em condições normais, talvez eu o teria chamado de louco e o ameaçado caso não fosse embora. Mas a embriaguez, aliado a um estranho e irresistível magnetismo pessoal que emanava de sua personalidade, e que mais tarde eu descobri ser um dos poderes dos vampiros, fez minhas resistências cederem e eu acabei o convidando pra entrar àquela hora da noite, como se fosse ele um velho amigo e não um estranho que eu acabara de conhecer.

Ele entrou, e eu fechei a porta. Eu caminhava à frente, e ele logo atrás de mim. Eu pretendia acender a lareira para sentarmo-nos na sala e conversar sobre o que lá ele queria me propor. Antes disso, ele me envolveu com um dos braços, imobilizando-me, e com o outro tapou minha boca. Tentei gritar e me debater, mas já era tarde. Ele aproximou sua boca de meu pescoço, e com seus caninos afiados que haviam acabado de se pronunciar, me mordeu bem na veia jugular.

Enquanto o meu sangue jorrava em sua boca e ele o engolia com uma voracidade que somente um monstro poderia ter, o meu corpo e minha alma encontravam-se numa lassidão cada vez maior, como se a morte nada mais fosse do que mergulhar num sono profundo.

Quando ele terminou o que estava fazendo, meu corpo era um cadáver sem uma gota de sangue e minha alma se encontrava num profundo sentimento de paz, preparando-se para entrar no outro mundo.

Eis então que eu me sinto ser violentamente trazido de volta para dentro de meu corpo, acompanhado por uma terrível sensação de desespero frente à presença de algo demoníaco. Quando me dou por mim, estou sugando o sangue diretamente do pulso de Gerard. Pela primeira vez eu sentia o que era, para um vampiro, a experiência de beber sangue.

Seria tão difícil explicar isso para alguém que nunca teve essa experiência quanto seria explicar para um cego de nascença o que é ver. Aquilo consistia de uma experiência extremamente mística e sensual, e acima de tudo, o ato de saciar uma fome avassaladora. Eu compreendera, naquele momento, que enquanto estivesse naquela condição amaldiçoada, o sangue seria muito mais do que o análogo à satisfação de uma necessidade fisiológica num organismo vivo. Aquilo era, e é, uma necessidade maior que todas as necessidades dos seres vivos juntas, e um vício, uma compulsão, da qual nem o mais resoluto dos homens, nem a mais inabalável das vontades poderia resistir.

Foi então que ecoou em minha mente aquela pergunta: "Por quê?" Mas ela não se dirigia ao monstro que havia acabado de me transformar em outro monstro. Ela se dirigia ao Todo-Poderoso, que agora, tal qual o próprio demônio, eu tinha certeza ser bastante real.

Josué

Uma história em um trem

— Eu sei que você a matou – disse Evelyn, com um sorriso apertado.

Foster tremera, seu mundo parecendo chacoalhar junto com o trem. Há pouco haviam se conhecido; ela, que se sentara na poltrona vazia bem à sua frente e puxara uma longa, agradável e suave conversa sobre vinhos e férias, agora falava de forma extremamente direta e seca, afirmando coisa séria.

— Como é que é? – perguntou ele, fechando o cenho, como se tivesse recém acordado de um sono profundo.

— Você não me engana. Eu sei que a matou.

O sorriso macabro e genuinamente feminino ficara ainda mais delineado. As sombras no seu rosto ganhavam em intensidade. Foster tremeu mais uma vez, e seus batimentos pareceram duplicar. Um suor nervoso brotou rapidamente do rosto, oscilando desde a sombra sob o chapéu até o pescoço pulsante. Haviam bastado seis singelas palavras para que as coisas tomassem outro sentido. Bastara uma pequena frase para que a bela, agradável e desconhecida Evelyn se tornasse imediatamente o seu pior medo.

Ela era alta e loira, os cabelos cacheados, atirados por sobre o tronco esbelto, os olhos azuis como o mar. O rosto ganhava ainda mais cores com a luz do crepúsculo adentrando o vagão, num jogo de iluminação compensada, poética, vagando entre o amarelo opaco de sobre as poltronas e o dourado puro vindo da paisagem lá fora. Foster lembrara-se de já tê-la visto na estação, embarcando, ainda na Filadélfia. Como uma garça, ela carregava no porte esguio o seu longo e elegante vestido azul claro, caminhando com leveza, sem malas, sem nada. Uma hora depois ela se aproximara de Foster assim que ele havia acordado de um cochilo leve mas problemático, e só aquele semblante angelical poderia interrompê-lo de forma pacífica. Cordial e extremamente educada, ela se apresentou, reclamando do tédio em viajar sozinha, e logo começaram a conversar. Não que Foster conseguisse prestar muita atenção a exatamente que safras de uvas o ex-sogro de Evelyn cultivara lá na Califórnia e a precisamente que cidades canadenses ela havia viajado no último ano, mas o homem se interessara muito. Pintava sua visão com a beleza misteriosa dela e mergulhava cada vez mais no azul hipnotizante daqueles olhos, até que foi desperto do transe.

Antes que Evelyn despejasse a acusação ex nihilo, a conversa havia chegado a um raro momento de silêncio, Foster vislumbrando o outono da costa leste com um sorriso tímido. Já estivera bem mais nervoso logo que ela havia cruzado as pernas ao sentar na poltrona à sua frente. Por isso, agora ele tinha a impressão de que a mulher estivera o tempo todo lhe amansando para que seu coração recebesse o baque com muito mais impacto, pois que totalmente despreparado.

— Não me pergunte porque, Foster. Mas eu sei – continuou ela, aos poucos o sorriso cínico dando lugar à uma expressão cerradíssima, a pior que Foster vira desde que tomara seu último copo sujo de uísque no Holy Water, ainda lá no centro escuro da Filadélfia.

E de fato ele não perguntou por quê. Ele não queria saber. Só lhe importava agora o que faria com aquela mulher. Foster é quem sorria agora, as bochechas tremendo no mais puro nervosismo. Ele sabia de sua fraqueza, mas precisava impor respeito imediatamente.

— Você sabe, meu amor... estivesse eu sentado na poltrona da minha casinha ainda, lá atrás, há horas de viagem, pensaria que isso é algum tipo de alucinação. Provavelmente estaria encarando agora o meu belo amigo Chivas, culpando-o mais uma vez pelos meus problemas. Normalmente eu rio quando vejo essas coisas, entende. Bom, eu não pareço estar rindo e nem tenho a porra de um copo cheio de gelo na minha mão. Então, se não estou louco, você é quem está.

Evelyn riu, baixinho, levando a mão delicada até a boca vermelha. As luvas brancas de seda fina pareciam armas de graça ilusora, dançando em frente ao colo e ao rosto.

— Nós dois sabemos disso, Foster. Você não tem porque ficar nervoso.

Ele se curvou por sobre a mesinha que os separava, vermelho e tremendo.

— Você não sabe porra nenhuma de mim, sua... – iria soltar os pulmões não fosse a aproximação repentina do garçom, que trazia uma bandeja com vinho e taças.

— Algum problema, senhor? – perguntou, notando o total desconforto de Foster, que suava debaixo do capote pardo. Foster cerrou os lábios e foi se acomodando novamente na poltrona, sem jeito. Balançou a cabeça. O garçom olhou desconfiado para a beleza magnificente da mulher – Bem, peço perdão; gostaria de saber se os senhores aceitam uma taça de vinho tinto?

Foster fez sinal negativo mais uma vez, sem paciência alguma. Retirou com veemência o chapéu e acomodou-o no colo. Encarou o carpete vermelho do chão e viu os pés sensuais de Evelyn aterrisarem detrás das patas da mesinha, os grandes saltos de bico fino maculando o veludo do tapete.

— Oh, é o nosso bom Cabernet? – falou ela, com uma jovialidade descarada.

— Sim, senhorita. Safra de 49.

— Maravilha. Sirva-me uma taça, por favor – o garçou inclinou-se para servi-la – o Cabernet é o rei das uvas roxas. Já lhe contei como são as uvas roxas lá na terra do meu pai, Foster? Nos terroirs além da costa, o sol e a chuva convivem de forma interessante, muito harmônica. Os ventos do Pacífico ajudam a refrescar as uvas, e elas adquirem uma cor impressionante. É um roxo orgânico, diferente desse roxo que vemos nos tecidos, é algo brilhante, respirando vida, a mais pura vida.

Foster nutria agora muito ódio pela falsidade que sentia emanar de voz tão suave. O que fora oculto e antes produto de uma mente eternamente desconfiada era no momento um grito de falsidade em cada sílaba, em cada pausa, em cada tom. Foster ergueu o olhar e contemplou os lábios que se molhavam na borda da taça de cristal. Mais vermelhos do que sempre, eles agora brilhavam sob a luz do vagão, enquanto o Sol finalmente abandonava o trem naquele início de noite. O garçom calmamente se retirou.

— Delicioso. Mas eu sinto por aquelas uvas sacrificadas. Eu realmente sinto. Deveríamos oferecer o sangue dessas uvas em sua honra.

Evelyn o fitava com olhos ainda mais penetrantes, como que contornados à bico de pena. A boca se tornara substancial, os cantos se erguendo vagarosamente para formar um novo tipo de sorriso. Uma pequena língua molhada de vinho se projetou para fora, viajando de um lado ao outro por entre a carne vermelha. Foster a encarava em transe, inconsciente. Ela segurava a taça diante do pescoço, como se fosse entorná-la novamente a qualquer momento.

— Você é fraco. Você não pode comigo. Não percebe isso? Eu não sou como Dorothy, Foster.

— Como diabos você conhece Dorothy? Eu nunca vi você na minha vida, demônio. Como você sabe de mim?

— Isso não importa, não é? – ela agora balançava a taça em pequeninos círculos, o líquido escuro dançando como sangue no cristal. Inspirou o buquê profundamente, quase ao nível do êxtase. Foster sentiu um repentino cheiro de ferrugem. O que importa é o que eu sei. E eu sei o suficiente.

— Você me seguiu. Você está neste trem unicamente pra me ameaçar. Por que você não falou desde o início o que tinha pra falar, por que está me enrolando desse jeito, sua vagabunda? E pare de mexer a porra dessa taça!

Evelyn parou, levando aos lábios o dedo indicador da outra mão, pedindo a Foster que fizesse silêncio, e ele baixou a guarda, voltando a se atirar na poltrona. Coçou fervorosamente a lateral grisalha da cabeça enquanto com a outra mão começava a puxar desajeitado alguns botões do capote. Forçou abruptamente a gravata, afrouxando a gola, e suspirou. A penumbra lá fora se preparava para se transformar na escuridão da noite. Algumas luzes vacilavam entre o contorno das colinas. Árvores disformes zuniam diante da janela. Conformado, Foster fez a pergunta inescapável, com os olhos no mundo exterior, enquanto a mente ainda trafegava pelo interior do trem, sem saída:

— O que você quer?

— Você é um bom homem, Foster. Não se desgrace pelo que fez – Evelyn bebeu mais um pouco do vinho, calma como pouca coisa naquele momento. Os trilhos retumbavam vez ou outra debaixo dos pés – Você estava alterado, fora de si. Além disso, nada anda muito bem pra você há muito tempo, não é mesmo? Todos nós esperamos que aquelas pessoas que nos são próximas venham a nos dar um ombro para enxugarmos nossas lágrimas. Com você não foi assim, não é mesmo, Foster?

Não fosse pela voz branda e estranhamente sensual, Foster sentiria ouvir a si mesmo, em mais um de seus monólogos intermináveis. Agora já se passavam quatro horas sem tocar os lábios no álcool. Não estava louco, sabia disso. Com as mãos enfiadas num dos tantos bolsos de seu capote, afundava sob seus próprios tecidos no canto da janela, encarando os lábios molhados de Evelyn se mexerem com uma segurança espantosa. O olhar dela é que mudara. As sombrancelhas haviam caído um pouco, num esboço de piedade.

— Você e Dorothy juntos eram incríveis. Havia poesia em seus olhos, havia um amor incomensurável, havia admiração. Porém, de algum jeito as coisas tinham que mudar, não é, Foster?

O homem começara a se desmanchar com as últimas palavras. Cada vez mais prostrado no canto da poltrona, sem reação, ele parecia mingüar ao lembrar de sua amada Dorothy.

— O crime lhe fez mudar. Você foi lentamente corrompido pela própria justiça que decidiu impor. Você viu coisas que lhe fizeram perder muitos dos seus critérios, que lhe fizeram perder o próprio senso do justo. Foi isso que você falou a Dorothy. Mas você nunca soube se ela acreditou, porque ela já tinha outra pessoa quando você pensou em se recuperar. Você a perdeu, detetive. E agora acha que vai resolver tudo se for bater na porta dela lá em Boston.

Foster arregalou os olhos. De repente aquele rosto nobre e voluptuoso ficou mais familiar do que nunca.

— Eu conheço você. Você é Gloria, a amiga de Dorothy! Eu sabia! Você morava no apartamento bem em frente ao nosso. Trezentos e...

— Dois. Exatamente. Não esperava que fosse lembrar de mim – mentiu; aqueles olhos retomaram a grande astúcia, e Foster recuou – Como você costumava dizer mesmo? “O álcool apaga a memória e outras coisas que não me recordo”?

— “Que não me lembro mais”. Piranha. Você me persegue há quanto tempo?

Gloria soltou mais uma de suas risadas curtas e graciosamente irritantes. Pousou finalmente a taça quase vazia na mesinha de centro, sob o olhar atento e irado de Foster. O enorme decote invadia o seu campo de visão enquanto ela se curvava. Voltando a confortar-se em sua poltrona, Evelyn abriu os braços, relaxada, o lindo pescoço totalmente à mostra, confiscado pela luz amarela.

— Você é tão rancoroso, nossa. Comigo você terá que ser diferente se quiser reconquistar pelo menos o respeito de sua amada Dorothy.

— Por que você não vai e conta logo a ela tudo o que eu fiz?

— Não, meu caro detetive. Eu não quero que a verdade apareça por suas costas. Você pode não acreditar, mas eu quero lhe ajudar.

Foster rapidamente respondeu com um som de deboche, disparando saliva por entre os lábios.

— Se você quer ganhar o respeito de Dorothy de novo, você terá que ser sincero e justo, como sempre teve vontade, sem que conseguisse. Você contará a ela o que fez, Foster. Contará tudinho.

— Eu não tenho saída, não é?

— Não. Na verdade, você tem menos saída ainda do que imagina. Porque há mais uma condição para que eu não conte a verdade no seu lugar.

Então, Gloria lentamente ergueu a taça da mesinha e, ainda encarando Foster, derramou sobre os seios o que restara de vinho. Cada gota vermelha dançou por sobre as curvas e escorreu dentro do vale, eriçando minúsculos pêlos nas cercanias dos mamilos que saltavam por debaixo do vestido.

As mãos de Foster se mexeram, inquietas dentro dos bolsos. O homem, ainda suando muito, aprumou-se novamente na poltrona. Fitava cada movimento do vinho por dentro do decote e ao redor dos seios, cada gota escura que maculava pele e vestido, antes tão suaves ao olhar. Por fim, voltava a encarar o azul brilhante ao redor daquelas íris tão femininas, lindíssimas. Um perfume inédito tomava conta do ar.
Gloria deixou cair a taça vazia ao seu lado e agarrou o encosto da poltrona, projetando os seios à frente. A boca, semiaberta, parecia maior e mais suculenta.

— Vamos, detetive. Desde o primeiro segundo eu soube que você me queria.

A expressão de Foster congelara todos os músculos da face. Apenas o suor mantinha-se vivo.

— Vamos, Foster. Se quisesse mesmo acabar comigo, já teria apontado a Colt que tem aí debaixo do casaco. Você é um bom homem. Você errou, mas é um bom homem.

— Você está enganada.

Foster saltou como um gato pra cima de Gloria, pega totalmente de surpresa. Antes que ela sequer pudesse mexer os braços, uma enorme faca foi enterrada em seu pescoço de seda. O homem cerrou os dentes, segurando o máximo que pôde a própria fúria titânica. Assim que a ponta da afiadíssima lâmina atravessou a carne do lado oposto, Foster tirou a mão daquela boca que tanto havia desejado. Puxou a faca com força, admirando o estrago que havia feito no seu inimigo. As cordas vocais, donas de voz tão sensual e ameaçadora, agora pendiam como gordura dentro da garganta aberta. Ele não deixou que ela sequer tivesse a reação típica da luta pela sobrevivência. Segurou os braços de Gloria na mesma posição que estavam, enquanto assistia o sangue se esvair em grandes jorros, banhando de vermelho a poltrona e o corpo tão novo, tão lindo. Focando-se nos belos olhos, agora mais escancarados do que nunca, Foster pôde ver seu reflexo em meio ao azul, que empalidecia. Ao encarar seu próprio sorriso, recuou, assustado. Foi até a porta de correr do quarto e a fechou, passando a chave.

Quando finalmente cessaram os esguichos mais lívidos de sangue, Foster sentiu-se pronto para remover o corpo da poltrona. Puxou o cadáver com rapidez, sem cerimônias, arrastando-o pelos braços até o minúsculo banheiro.

— Você não me queria, vagabunda? Não me queria? – urrava por entre os dentes cada vez mais comprimidos.

Foster a pôs de quatro, apoiando-a na pia, e, no impulso, levantou a saia manchada de vermelho. Ela estava sem calcinha, e ele, excitado já há um bom tempo, não demorou a penetrá-la. Com as mãos contra a pia, o homem se debruçou sobre Gloria e estocou diversas vezes na carne morta, sem resposta, sem outro movimento que não o dele. O gozo mórbido não demorou a chegar, e, assim que um longo arrepio trafegou pela coluna de Foster, ele se deitou sobre o corpo imóvel. Chorou, chorou muito. Por vários minutos ainda misturou suas lágrimas ao sangue de Dorothy, erguendo vez ou outra o olhar para si mesmo no espelho. Quando o nojo decidiu aparecer, Foster se levantou. Contemplava apavorado a obra em vermelho que recém pintara no recinto. Tomou o vinho que restava na taça. Já era tarde.

Ninguém precisou acusá-lo do crime que cometera na Filadélfia horas antes de embarcar no trem para Boston. A arma usada e uma calcinha com o nome de Glória repousavam em suas mãos enquanto ele dormia profundamente em uma das poltronas. Foster era o último passageiro a abandonar a viagem.
O detetive nunca mais viu o rosto de Dorothy. Nunca soube o paradeiro dela, e ninguém veio libertá-lo da cadeia. Alguns dias depois o encontraram pendurado pelo pescoço a um trapo de roupa em sua cela, balançando pra lá e pra cá. No chão, escrevera uma palavra a sangue:

Liberdade.



Renan Santos

Fiat Lux

Desde que fiquei cego deixei de fazer a barba. Primeiro, porque não gosto que passem a navalha em meu rosto. Não por medo. O medo, nesse caso, é até estimulante, pois, talvez por erro de destreza, o barbeador falhe em seu ofício e acabe, sem querer, retirando meus 4 sentidos restantes Segundo, pra não ter ter uma barba mal feita. Se não os vejo, eles me vêem, e mesmo um cego se importa com a aparência.

Todos se revezam em fazer minha barba – desde minha mãe, passando por tios, primos e irmã. De todos eles, o toque mais aprazível é o de minha irmã. Sabia o estado emocional de minha irmã através dos cremes que ela usava no corpo, em especial nos braços. Seu namorado, infelizmente, não percebia esses cheiros, porque estaria preocupado em vê-la. Meus tios, já relativamente idosos, tinham um chiado em seu pulmão que me desagradava. Anos de fumo causavam-me uma dupla sensação de nojo: o cheiro da nicotina impregnado em seus corpos e o chiado perturbador de seus pulmões. Esse som era tão forte para um cego que às vezes pensava que sempre que o telefone tocava haveria uma notícia de câncer no pulmão. O que não ocorreu. Não gosto de enterro. Desde minha cegueira não fui a um enterro. Não desejo que nenhum de meus tios morra. Não suportaria o cheiro de nicotina, formol, flores e o resmungo fingido de minha parentela.

Não sei qual aparência que tenho. Se é repugnante, trágica, cômica ou indiferente ao observador. Além da barba, sei que sou magro. Também cultivo o hábito de tentar lamber meu cotovelo e nessas tentativas deparo-me um braço delgado. Sou magro porque, defecar, para mim, é um suplício. O cheiro de excrementos é repulsivo e desde então tenho evitado comer. É previsível que minha maior atração seja a música. Depois que fiquei cego joguei fora todos meus antigos discos, e, com a indenização eu ganhei da fábrica, passei a ouvir apenas música erudita. Não por esnobismo, mas era a única possível de ser ouvida – além de bem compostas, eram bem executadas. O que não ocorria com o prazer hormonal que tinha ao ouvir rock. Gosto do cheiro de café. O café substituiu o sol para mim. Voltei a morar com meus pais, e sempre que sinto o forte cheiro de café, levanto-me e encontro o bule onde quer que esteja. Apenas o café. O cigarro abandonei, por medo de ter minha barba em chamas. (Ou aquele câncer pulmonar).

Hoje fui caminhar na praça mais próxima. Ouvi alguns trovões, o que me fez procurar algum lugar para ficar. Não gosto de entrar em bares, padarias, ou locais que vendam comida. Não gosto de lojas. O zumzum das mulheres me enerva. Sabia que do outro lado da calçada havia uma igreja, mas gostaria de evitá-la. Não pelo óbvio motivo de culpar a Deus por minha cegueira, mas porque, se há algo insuportável, são os gemidos dos fiéis. Esse gemido anti-erótico, dos cães e dos homens. A chuva caiu. Não pude evitar. Atravessei a rua com auxílio de alguém que cheirava salsicha e purê – um degustador de cachorro-quente, com certeza. Entrei na Igreja. Estava silenciosa; um silêncio tão abissal que parecia o início dos tempos. Sentei-me no primeiro banco que pude encontrar. Sei que as igrejas católicas possuem as cenas da vida de Cristo. Mas não poderia vê-las. Nunca me interessei por religião. Não sou ateu, ou crédulo. A existência ou inexistência de Deus em nada alteraria a minha existência. O que ocorre aqui não é uma fé ou descrença em Deus, mais uma sensação - agora ainda mais forte - da fé e descrença em minha existência. Crer em si mesmo com visão é difícil. Crer em si mesmo, cego, é ainda mais difícil, o que fez daquele silêncio um indício de minha inexistência.

Levantei-me para ouvir meus passos. Pensei que deveria ter saído de casa com sapatos. Os tênis que uso não fazem tanto barulho no chão; já um sapato o faria melhor e eu teria algum som para ouvir dentro dessa Igreja amedrontadora. Não sabia se havia pessoas por perto – então, não poderia bater os pés com força para ser ouvido. Nem a bengala. Pensariam que, além de cego, sou doido.

Não pude agüentar muito tempo – o silêncio me sufocava. Me sufocava de tal forma que desabotoei a jaqueta e comecei, a contragosto, bater com minha bengala no chão. Um homem segurou meus braços, e perguntou “o senhor está se sentido bem?” Disse que tinha asma e que gostaria de tocar em algum santo, ou em uma imagem, qualquer coisa que pudesse me ajudar. Um padre? Os padres têm ar de limpeza externa e impureza moral. Um cego não pode consultar a imundícia moral de ninguém, e minha única constatação era de que o homem tinha excelentes hábitos higiênicos e não tinha o mau gosto de usar perfumes. '”Levanta, vem aqui”. Pedi que ele apenas me conduzisse pelos ombros, sem apertar meu braço. “Tudo bem, vamos andando, é por aqui... “ Segurou meu punho e conduziu-me a algo que pareciam outros ombros. Tateei e percebi que eram as costas de homem de gesso. “São as costas de Cristo”. “Está sentido os ferimentos?” “Ele foi açoitado, está sentido?” “Toque, não tenha medo... está sentindo os ferimentos?”

O escultor dono de um senso de simetria perfeito, fez os açoites parecerem figuras geométricas, não aquelas feridas caóticas onde o sangue respinga desordenado pelas costas do ferido; eram cortes simétricos, unidos. Com a voz embargada o homem disse “aqui... está sentido, são as mãos...” Eram dedos pontudos, com perfurações circulares no centro de suas mãos. Passei todos os dedos sobre a profunda ferida. Era tão verossímil que, sem que o homem percebesse, passei as mãos em minha jaqueta para retirar o sangue. “Aqui são os pés... Jesus agüentou toda essa dor... por nós... “ Pensei que aquele homem queria me impingir a sensação física de dor. E, antes que me mostrasse as outras chagas, hesitei em dizer que a dor moral é ainda mais forte. E que o tapa, um tapa que um escultor não pode representar, é ainda mais doloroso que açoites ou perfurações nas mãos. Engolir um tapa na cara foi uma grande proeza desse deus encarnado. Mas não era uma lição fácil de se ensinar. Envolve um masoquismo que recalcitrantes não aceitaríamos, porque, na maioria das vezes, nosso sadismo prevalece, e talvez o homem de voz embargada acariciasse aquelas chagas para obter... prazer.
“Toque aqui... Aqui está a ferida da lança... “ Coloquei meu indicador dentro da ferida, gostaria que houvesse, ali, um coração pulsante. Era só gesso. E eu pedi para o homem me devolver aos bancos.

“Jesus suportou mais, muito mais, meu jovem”. Cordato, eu disse que sim. Gostaria de pedir vinho para homem. O vinho é sublime. Desde minha cegueira passei a degustar vinhos. Pena que os rótulos não são escritos em braile. Nunca gosto de perguntar qual é o nome do vinho que estou tomando para saber diferenciá-los. A morte de Cristo é uma lição de enofilia. Lembrei-me que ainda havia sangue em meus dedos. Chupei-os. “Jesus teve sede, e lhe deram vinagre”, disse o homem. Sua voz era vibrante, e pensei em apertá-lo, como a uma esponja encharcada com vinagre. Levantei-me e saí.

Na porta da Igreja, ouvi: 'No princípio criou Deus os céus e terra. E disse Deus...', o homem, cuja voz de barítono irrompeu o silêncio palpável do ambiente, arrematou “E disse Deus: haja Luz! E viu Deus que luz era boa”.

A chuva passou. Sabia que havia um sol, que esquentou minha face.


Thiago Cardoso