Cenas de um Casamento

— Rê, você ainda me ama?

Renato continuou enxugando as mãos. Dedos enrugados. Gostava de suas mãos, que Márcia dizia ser de ogro.

— Esse clichê de novo, benzinho?

Márcia tinha um daqueles sorrisos tímidos e introspectivos, dedões do pé enormes. Gostava de chanel e dizia ser eterno, mesmo com o Renato grunhindo que ela não tinha mais idade pra "esse cabelinho".

— Fala, fala, amor?

— Ah...

— Amo, porra.

— Estúpido.

Márcia era um clichê mesmo. Botava as mãos na boca para sorrir. Empinava a bunda na frente do espelho, torcia o pescoço para trás como uma ave esdrúxula e ficava contemplando seu par de nádegas. Odiava celulite e gostava de chocolate. E do Renato.

— Má, sabia que sua mãe é gostosa?

Márcia encobre a os lábios com mãos. Surgem dois olhos castanhos comuns, comuníssimos. Depois ri mostrando a gengiva.

— Isso também é um clichê, sabe que não ligo...


A mãe de Márcia é alcoólatra e problemática. Márcia passou a vida de clínica em clínica, vendo sua mãe se deteriorando “física e psiquicamente”. Márcia gostava dessas expressões, lembrando de seu pai, outro clichê (advogado: bem sucedido). "Moral e fisicamente". Lembra que o pai tinha mãos minúsculas e sempre estava folheando papéis. Aproximava a face no papel para ler, comprimindo os olhos para focalizar. Seu pai vertera-se em suas lembranças num binóculo desfocado.

Seu marido sempre dava um jeito de enfiar sua mãe bêbada em suas conversas, tentando incutir uma sensação de normalidade ao fato de sua sogra ser uma velha bêbada.

A velha começou a beber como um clichê, sentia-se só, o marido tirava bandidos da cadeia enquanto ela bebia hi-fi.

Nunca teve tempo pra filha ou para a esposa. Disso Márcia não podia reclamar: achava muito "fofo" que seu marido tentasse verbalmente construir uma vida "normal", expelindo para longe uma mulher precocemente envelhecida e bêbada, cuja satisfação era causar pequenos escândalos no prédio velho onde morava. Renato transformara a velhota em uma gostosa, numa tara de Nelson Rodrigues. E repetiam-se os dias: "você me ama", "sua mãe é gostosa?" e o gesto diário de olhar estrias na bunda. Márcia com a mão na boca.

Renato costumava dizer que conheceu "a velha" pelo cheiro antes de ser apresentado aos outros sentidos. Márcia tapava o rosto rindo.

— Rê, pega um chocolate?

— Isso dá celulite.

O telefone tocou. A velha tinha pulado do décimo quarto. Renato resolveu toda a burocracia. IML. Foi interrogado por um investigador querendo mostrar serviço, novato, tentando incluir "a velha" numa história rocambolesca de traição, conspiração e herança. Terminada a burocracia com 007, a velha foi enterrada. Sentem-se culpados por sentir alívio.

"Sabia que sua mãe é gostosa?" era uma espécie de pêndulo, de compasso da relação. Era um yin yang quotidiano. "você me ama?".

Na ausência da velha, Renato e Márcia se esbarravam, não sabiam o que fazer, até iniciarem um novo ciclo. Começava com Márcia perguntando:

— Amor, você acha que meus peitos estão caindo?


Thiago Cardoso

4 comentários:

  1. Vc já é escritor profissional, certo? =]

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  2. Os outros dois demonstram uso mais livre de criatividade, sendo Fiat Lux meu favorito. Mas, como um exercício sólido e maduro, eu gostei muito desse.

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  3. A gente fica véio [voz do Cazuza] e "deixa de acreditar". Mas nem tudo está perdido. [voz do Renato Russo]

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