Sultanato

1.

Antes do alarme de seu relógio despertador, seus olhos se abriram e soube que o horário de ir ao seu trabalho aproximara-se. Resolveu interromper o seu galo portátil antes que começasse a cantar e a acordar toda sua família. São, ao todo, junto como cachorro, e sem ele, 8 pessoas. Hoje é dia de pagamento, o que lhe traz uma sensação ambígua. Todo seu pagamento iria para o sustento de seus irmãos, dízimos à Igreja que sua mãe freqüentava, além de remédios e garrafas de bebida para seu padrasto. Olhou, na penumbra, o olhar de um santo, perguntando a si mesmo porque os santos têm olhares piedosos? Há, ainda, em sua casa, vestígios de todas religiões que sua mãe, estoicamente, alternou durante todos os anos. Não era de se espantar que ali, junto à bíblia aberta no salmo 91, houvesse um santo acólito a observar toda a família. Virou-se, pois não gostava de ser encarado – mesmo que esse olhar viesse de um santo – com piedade. Seu bairro passa por dificuldades na transmissão de energia elétrica, por isso há velas disponíveis por toda casa. Pensou em atear fogo sobre si, sobre seus irmãos e mãe, além do padrasto, por onde começaria pelo bigode. Abandou a idéia, porque, além do cheiro insuportável que tal incêndio produziria, ouviu o ruído da chuva, que, naturalmente, apagaria o nascente incêndio – deixando seus 5 irmãos parcialmente deformados, seu padrasto e sua mãe. Teria que encará-los depois, e essa visão era desanimadora. Não nutria ódio por eles, mas uma profunda vontade de tê-los longe. Deformados seriam ainda mais onerosos. Olhou, novamente, toda família em profundo sono, não o sono dos justos, o sono tranqüilo dos abastados, mas um sono apocalíptico; pois cada dia parecia mais uma guerra do que um mero dia. Pensou em acender velas e colocá-las nas mãos dos dormentes para tornar mais luminosas suas vidas-mortas ou mortas-vidas.

Uma vela apaga-se facilmente com um suspiro. A vida humana é consumida como a parafina de uma vela ardendo. Pensou que um suspiro, um suspiro fatal do destino, ou mesmo de Deus, havia apagado a chance de ser consumido como uma vela, pois se atribuía apenas o direito de trabalhar, prover o sustento de sua família e não falar muito, ou reclamar, acreditava que tal situação era imposta por forças exteriores, e encarar, diariamente, o olhar piedoso do santo, era uma terrível ironia que suportaria, mesmo não sabendo o porquê de tal imposição, não iria contestá-la.

Seu barraco, de manhã, tinha o estranho cheiro de café, água-ardente, pomadas, que, juntos, embrulhavam seu estômago, tirando-lhe o apetite matinal que tinha antes do estabelecimento, por definitivo, do homem com o qual sua mãe vive. Esbarrou, sem querer, na bíblia aberta no salmo 91, e, talvez por coincidência, caiu nos trechos finais do apocalipse.

Taças. Sentiu sede, assim como a sede que Jesus experimentou na cruz. Bebeu um gole de café morno, antes de pisar para fora de seu quintal e dirigir-se à estação de trem.

2.

Hoje seria dia de pagamento, o que lhe dava a efêmera sensação de descanso físico-psíquico. O balanço do trem, em dias normais, bem poderia ser comparado aos navios negreiros, mas, quando sabia da eminência de seu pagamento, seu balanço tinha o delicioso balanço das gôndolas vienenses. Ao chegar à construção onde trabalhava como auxiliar de pedreiros, notou uma movimentação estranha, havia pessoas estranhas em seu local de trabalho; um homem de terno, perfumado, saía de um belo carro estacionado do outro lado da rua, e juntava-se aos outros estranhos. O que pretendiam aqueles homens ? Demiti-los? A sensação de uma demissão lhe causara uma ambígua sensação similar à que provou ao pensar no incêndio de sua casa – mas, se houvesse incêndio ou demissão, onde (e do que) viveria? Achou mais prudente não pensar no assunto, passou longe dos homens reunidos próximos à pequena construção onde faziam suas refeições. Seus colegas de trabalho, todos pedreiros de profissão, efusivos desde a manhã, cantando, gritando, falando obscenidades em tom alto, estavam, também, por causa dos homens reunidos, apreensivos, comunicando-se por olhares, cochichos e pequenos empurrões. A visita desses cavalheiros teve o poder de calar seus colegas de trabalho, o que lhe fez pensar que seria um dia ainda mais agradável do que todos os outros.


Na casinha onde faziam suas refeições, já na hora do almoço, todos os autorizados a realizarem o almoço em primeiro tempo, começaram a tecer especulações sobre a vinda dos homens de terno. ‘Marco, você sabe de alguma coisa?’. ‘Não, não sei’. ‘Posso ficar com um pedaço desse seu bife?’. Poderia não dar o bife para seu companheiro, mas sabia que, lhe dando, teria o silêncio do loquaz pedreiro que se punha a imaginar a repentina visita. Os homens de terno, depois de sua saída para almoço, que, aproximadamente, durou 2 horas, voltaram, para depois, definitivamente, partir, deixando-os ainda mais curiosos.


Já estava com a pele coberta de cal, esbranquiçada, o que fazia seus amigos zombarem do contraste de sua escura pele negra com o branco da cal, dando-lhe apelidos pouco convenientes. O que não irritava em si, mas o tom gritante e brusco que eram feitos. Havia, entre eles, dois pedreiros por quem cultiva certo respeito; os dois, além de sérios, contavam-lhe histórias sobre as prostitutas do centro de S. Paulo, sobre preços, sobre a tarifação, sobre como escolhê-las, como diferenciá-las de um travesti e até como pechinchar! Explicaram-lhe, os dois, que as prostituas mais baratas são as melhores e que não há frescuras com elas. Mostraram-lhe, também, que as prostitutas caras, além de frígidas, não faziam, facilmente, as mesmas coisas que as baratas faziam. A despeito da feiúra e repulsa que uma puta barata pode causar, ensinaram-lhe que não se devia ater, por muito tempo, no rosto delas, sob a pena de perder a ereção.

3.

Já tarde, ansiava para pegar o seu pagamento. Recebeu o dinheiro em um envelope branco amassado. Desconfiava sempre da quantidade do dinheiro que ali estava depositado; mas, por precaução (e vergonha), evitara abri-lo diante de seus patrões.

Dentro do ônibus parado em um engarrafamento, pensou, novamente, em sua mãe moribunda: nas religiões que se sucederiam ano após ano; em seu padrasto bêbado, fétido; seus irmãos sujos, maltrapilhos; os remédios, as garrafas de cachaça e dízimos. Lembrou-se de seus amigos, que já contavam experiências sexuais. Contavam-lhe sobre seios, coxas, pernas, orelhas. Diziam sobre o cheiro das mulheres. Detalhes sobre posições. Palavras. Gestos. Já estava cansado de, quase diariamente, masturbar-se e levantar tijolos. Via os carros enfileirados, inertes, buzinando. Os homens esbravejam. O sol se punha no horizonte. O cheiro do suor. Homens desabotoavam alguns botões de suas camisas. Pêlos apareciam. Axilas. O batom das mulheres já não tinha vermelhidão. Eram bocas esmaecidas. Gritou dentro de si: ‘é hoje’. Saiu apressadamente do ônibus, esbarrando nas pessoas, para ir à rua.
Na primeira padaria pediu um copo de conhaque. Bebericou-o. Quase desistiu de terminá-lo. Teve vergonha de não continuar e decidiu, de um único gole, tomar toda a bebida. Perambulou pelo centro da cidade. O efeito do álcool estava surtindo alguma mudança em seu comportamento. Foi até o meretrício, onde podia observar uma mulher que pudesse desvirginá-lo. Olhou-as rapidamente. Decepcionou-se. A maioria era de péssima aparência. Se não fediam, usavam perfumes ainda mais torpes. Algumas tinham dentes de ouro. Outras não tinham todos os dentes. Metade delas tinha pernas grossas, quase bestiais. Caminhavam pesadamente nas esquinas. Peitos que caiam.

Murchos e já anunciando estrias. Não queria concebê-las nuas. Muito menos – mesmo animado momentaneamente pelo conhaque – tinha vontade de se aproximar. Ouviu um homem negociar o preço e percebeu que a quantia era barata para o valor de seu salário. Poderia ludibriar sua mãe e afirmar que havia recebido um salário menor nesse mês. Nesse instante teve medo de contratar um serviço de um travesti, o que lhe fez apertar o passo e sair rapidamente daquele lugar.

Sentiu-se com uma ilha, circundada pela feiúra e fedor por todos os lados. Não haveria belas mulheres no mundo? Não haveria cabelos lisos, claros, unhas limpas, pernas suficientemente grossas sem bestialidade? Colos ebúrneos? Vozes polidas? Perfume?


‘Na Augusta’, pensou. Sim, tinha diante de si a solução e problema, cuja equação jamais poderia resolver: uma noite com uma prostituta deste nível iria lhe levar todos seus rendimentos, obliterando, então, todo estoque de pomadas, remédios, garrafas de pinga e alimentos para sua mãe, padrasto e irmãos. Como poderia encarar Santo Expedito? Como poderia ver as chagas de sua progenitora. Seu padrasto estaria longe do fétido odor dos bêbados? Enquanto pensava nas inúmeras possibilidades, desfavoráveis e favoráveis à sua causa, viu-se diante de mais bela mulher que podia ter diante de si: canelas finas, coxas devidamente talhadas sem a bestialidade e a excessiva magreza; olhos azuis, cabelos castanho-claro; esmalte delicado em dedos pontiagudos. Percebeu que a pequena beldade se aproximava, acompanhada de uma outra mulher. Elas o olhavam. Tinha vergonha e curiosidade, o que lhe fazia desviar o olhar e focar novamente em seus corpos. Rindo elas tocaram em seu braço ‘está perdido?’. Balbuciou algo que não poderia ser definido como ‘sim’ ou ‘não’. Não sabia como lhes perguntar o ‘preço’. Não sabia o que dizer. Se as ofenderia. Se poderia ser recebido. Estavam sorridentes diante de si, mas não as entendia. Suado e esbranquiçado pela cal, parecia um andrajoso mendigo. ‘Gostou de nós?’, perguntaram. ‘Sim.. errrr, qunt.. ‘ Antes de terminar a frase, a mulher dos dedos pontiagudos dizia ‘os negros tem o pinto muito grande... vou cobrar mais caro de você’. Sua amiga soltou uma discreta gargalhada e terminou ‘por isso é que eu vou dar um desconto pra ele... não agüento mais esses brochas, executivos do pau pequeno’.

Antes de gozar ele conheceu o paraíso por cinco minutos.


Thiago Cardoso

Réquiem para a Inocência

A lua estava magnífica. A escuridão pontilhada do céu se rendia a um halo azul, que brilhava, hipnotizante. Havia uma camada de vapor inebriante no ar. Enquanto a luz incidia em tons azuis e cinzentos sobre as formas e curvas que despontavam da penumbra na sacada, Rose inspirava a atmosfera da noite. Relaxando aos poucos sobre a espreguiçadeira de vime, a mulher puxou os cabelos castanhos, reconfortando-os sobre os ombros e parte do encosto. O olhar à lua esplêndida foi baixando até que contemplou cada vinco, cada curva e cada minúsculo pêlo do abdômen, brilhando soturnos, como a relva orvalhada numa madrugada fria. A temperatura amena daquela noite não abalou a sua naturalidade na sacada; sentia-se viva, entregue nua ao luar, enquanto uma brisa gostosa vagava de vez em quando pela superfície da pele, causando minúsculos arrepios. Ergueu um pouco as pernas, vislumbrando o corpo belo e liso, a pélvis jovem, há muito pouco tempo maculada. Achava-se linda como nunca, via-se naquele momento como uma escultura grega exposta à iluminação divina, invejada por uma Afrodite incapaz de provocar tumultos sobre a Terra. Quisera Rose que sua vida se contivesse neste quadro quase mitológico de beleza e juventude, incapaz ainda de se misturar às tantas diferentes figuras humanas que com insistência poluem o ideal do Absoluto.

Ao lado da espreguiçadeira, descansava um papel de carta dobrado sobre um banco de madeira. Rose deslizou o braço até o objeto e, com a ponta dos dedos, o trouxe até seus olhos, focando-o como se fosse agora reler tudo com mais atenção, mesmo a minúcia de uma vírgula sendo perscrutada com energia. Se daquele corpo banhado pela luz da noite parisiense emanava uma lascívia tão plena e aparentemente tão segura, dos olhos raiavam archotes azuis de uma angústia contida, auto-piedosa e infantil. O olhar, ainda que doce, balançava pra lá e pra cá com força e perplexidade, contrastando de maneira atroz com o ideal helênico ali formado. Era como se Zeus pusesse a deusa à prova de sua própria magnitude humana, sem a qual jamais poderia constituir-se no inconsciente dos homens, transcendentalíssima. Você é uma dádiva da natureza, assim lhe dizia o autor da carta, diversas vezes, sentindo sua respiração nervosa, apaixonada.


“Querida Rose,

Hoje eu finalmente consegui meu papel e minha caneta, que há tanto pedia para a segurança. Está certo que eu não fui o homem mais humilde do mundo quando o fiz, mas, convenhamos, eu sempre acreditei que a piedade dos homens aumentaria num ambiente lúgubre como este. Talvez meu erro seja este; acreditar que a piedade sequer seja passível de se manifestar aqui, que dirá mensurada. Foi Royenne (lembra dele?) quem me disse uma vez que a pena só pode vir acompanhada de temor, temor de que algo semelhante ocorra para si. Rose, é incrível o que fizeram com estes soldados, sim, soldados, porque é assim que convém chamá-los. O Estado de Medo é tão bem sistematizado, tão bem executado, tão direto ao ponto ótimo que ele é capaz de despertar todos as manifestações contrárias ao que se esperaria. Quando o medo desperta a frieza, quando o medo desperta a indiferença, quando o medo desperta a racionalização de todas as coisas é porque, de fato, o trabalho de dogmatização foi muito bem feito (o “bem feito” aqui com um significado muito diferente, totalmente contrário ao que uma vez lhe ensinei, Meu Amor).

Mas dessas coisas todas já falamos, e me basta ter repetido as vezes que já repeti em nossas proveitosíssimas tardes no Memorial, minha linda Rose. Venho, na verdade, por meio desta, dar meu Adeus definitivo, e, quando você estiver lendo esta linha, espero que nossas mentes ainda possam estar conectadas como sempre estiveram. Oh, Rose, eu sinto tanta falta sua. Desculpe pelo borrão, mas, como já lhe falei, esta foi a única e fortuita folha de papel que eu poderia ter recebido aqui nesta cela. Quanto ao meu ato falho, tenho certeza de que não preciso explicar a razão.

Sinto uma dor aqui dentro e uma ansiedade que jamais senti nestes 33 anos de vida. Já corri por todos aqueles lugares e já fiz todos aqueles salvamentos que lhe contei tantas vezes, e nunca meu coração esteve próximo desta força descomunal com que bombeia agora o sangue do meu corpo, cheio de um último baque de vida realmente desfrutada. Não me é possível contar nos dedos das duas mãos as vezes em que senti o bafo ardente da morte, e, ainda assim, cada uma delas jamais seria capaz de superar a intensidade vivida em nossas noites à sós. Não estou sendo um tanto repetitivo e prolixo por acaso, minha amada. Perdoe-me por isso, mas é minha última mensagem e o seu último olhar pra dentro de minha alma. O que não se pode ver nos olhos pode se captar na palavra, e agora é justamente isso que me falta. É tanta coisa que gostaria de dizer, somado à falta de um método de edição mais econômico, que minhas últimas palavras soarão exatamente como minhas últimas palavras, como se você agora pudesse me segurar agonizante em seus braços, como nos filmes mais românticos e trágicos. Mas não é o conforto dos seus braços que agora me sustenta. Não que esta cama seja ruim, sabe, amontoando aqueles dois lençóis grossos que me deram até que dá pra fingir, quando fecho os olhos, que ainda descanso em casa. O cheiro é que é terrível, lembra muito o almoxarifado da Dona Marble, mas eu já me acostumei a respirar pela boca desde o dia em que pus os pés aqui. Só pode ser ironia que minha morte venha justamente pela inalação. Mas é assim que a maioria dos detentos aqui preferem que se dêem suas condenações. Talvez eles tenham a ilusão de que é possível morrer sem um mínimo de agonia derradeira. Eu não acredito nisso, você sabe. Lamento, na verdade, que haja tanta covardia mesmo quando seus dias, seus minutos, seus segundos já estão contados. Não falei antes do temor e da piedade? Pois a covardia só pode existir onde existirem ambos, e os três só onde não se é possível prever o futuro. Engraçado, agora, falando assim, até me sinto um tanto privilegiado. É aqui neste lugar que o indeterminismo encontra seu fim, percebe? É aqui que uma parte da filosofia encontra seu grande desafio. Não é apenas nossa condição de seres mortais que passa por um questionamento altamente remissivo, mas também nossas atitudes mundanas, nossos caminhos, nossas experiências. Não pense que eu nunca imagino que você deva se culpar por este meu destino, minha linda e pobre Rose; e este seu sentimento é algo que temo desde que vislumbrei o seu último e doloroso olhar de desespero enquanto fechavam as portas do camburão. No entanto, peço-te, por favor, que contenha pensamento tão abjeto e ao mesmo tempo tão ingênuo, ainda que eu saiba ser essa uma tarefa extremamente difícil, quase impossível para uma mulher, sempre tão passional; que dirá para uma menina. Engraçado eu pedir que se rejeite justamente o comportamento que mais contribuiu para arrebatar o coração deste pobre homem aqui. Oh, arrebatar, era essa a palavra. Se eu pudesse resumir esta carta em uma palavra tão importante, se eu pudesse transparecer todos os sentimentos que perspassam minha alma neste momento, eu resumiria tudo em: Arrebatamento. Amor que arrebata, Verdade que arrebata, Condenação que arrebata – e a Morte, que por si só é a epítome do Arrebatamento.

Quisera eu não precisar falar d'Ela neste momento, mas é que da própria folha em que escrevo emana um odor funesto, quem sabe imperceptível se nela estivessem escritas palavras auspiciosas vindas diretamente do Juiz-Mestre, quem sabe um pedido de desculpas do Gabinete. Ora, Deus é um sátiro, só pode ser isso... Meu tempo neste mundo acabando, minha alma já em uma atmosfera de despedida, e, neste instante, eu reservo em minha mente, até mesmo em meu coração (e me dói dizer-lhe isto) mais espaço para o Príncipe Negro do que para você, Deusa dos meus sonhos.

Oh, é inevitável, meu amor, me perdoe. Você nem bem possui ainda uma noção exata das jurisdições dos homens (assim o penso, e de toda forma posso estar cometendo o mesmo erro de julgamento dos outros, principalmente dos que me lançaram à Ela), nem mesmo é capaz de abarcar na sua doce juventude a extensão, a influência e a grandeza das incertezas amorais e imorais de nossos tempos. Tudo o que lhe é possível de ser explicado eu já cheguei perto de explicar, lhe garanto. Você não está assistindo a uma contradição de promessas – as minhas contra as deles –, embora, com certeza, assim deva lhe parecer. Como eu já havia lhe dito diversas vezes, aguarde pelas explicações mais estapafúrdias. As palavras, feias, desconexas e até mesmo exageradamente eruditas e solenes para um mocinha soarão como um desagravo de uma situação julgada inevitável, para eles inevitável desde a origem do Universo. Você perguntará; é isto a Justiça? Tanto importa o que eles irão retorquir, mas a sua tréplica será a mesma, saltitando da esfera mais fundamental de sua essência, que é a mesma minha e, sim, a mesma deles, pois que a Justiça ultrapassa todas as barreiras do tempo, que dirá das idades (lembra-se?) Isto não é necessário eu lhe repetir.

Será na meia-noite de terça-feira que serei extinto, e então, é forçoso contar-lhe, minha bela Rose, algo ocorrerá dentro de ti. O tempo irá parar, e tudo ao seu redor irá escurecer, como se o silêncio no espaço engolisse o próprio coração, que já nem sabe porque ainda pulsa. Eu sei que o é assim, pois já senti o mesmo, e não o foram poucas vezes, como sabes. Mas você resistirá, minha anja. Você se encontrará como a criatura mais solitária do Universo inteiro por milênios – embora não dure isso –, mas você resistirá. Você resistirá porque já terá lido minha carta e estará atenta ao seu redor; não com seus belíssimos olhos, mas com sua consciência. Você saberá que minha ruína post-mortem não será exclusividade sua, mas será partilhada por cada um daqueles que estiverem assistindo à minha sentença (por que eles fazem isso, Rose? Quando o fiz, também não soube dizer, e até hoje não compreendo). Cada uma daquelas pessoas, homem ou mulher, criança ou adulto, também mergulhará em seus próprios abismos, experimentarão suas próprias micro-ruínas. Como exemplo, eu continuarei vivo. A Morte irá lhes cuspir na cara como um palhaço negro. A culpa jamais encontrará sua causa física – é possível que os carrascos, soldados últimos desta Máquina da Injustiça, sequer realizem que sou um homem –, mas tomará todo o recinto. Quando a Ordem for mais uma vez corrompida, esta sombra dominará a câmara muito mais rápido do que o gás, e será muito mais fatal, muito mais imediato e ao mesmo tempo muito mais residual. Ela o será para sempre, num movimento eternamente revolucionário, conflagratório. Do ser ao ser. Do homem ao homem. Não sou eu que o desejo. É a Natureza. Se como defesa ela não serve ao homem (este homem de hoje), que sirva então como lição. Não sou um defensor do hedonismo, oh, jamais seria, Deus me livre. Não julgue-me como um sacripanta do prazer, aproveitador das sensações. Não julgue-me como vingador, mas como uma bilionésima parte de um mártir histórico, ético e moral. Eu sou o próprio Karma em símbolo. Que seja assim, então, e que em outra realidade o Homem aprenda a aceitar a si mesmo e aos seus instintos.

Oh, pequena Rose, me perdoe. O que acabo de fazer?

Te amo,

Pela eternidade,

M. C.”


Era uma tarde de quinta-feira muito fria quando Rose empertigou-se no sofá, ouvindo os passos serenos e resolutos da velha Marie-Glesson. A senhora sentou-se à sua direita, sem proferir uma palavra sequer. Por um longo minuto, ficou observando os olhos úmidos e acanhados da pobre Rose. Marie parecia não se importar com absolutamente nada. As maçãs do rosto estavam rijas, mas logo sua feição foi se encrespando, lentamente, até o ponto de ebulição.

Por que você insiste em ler esta carta, menina, perguntou ela. O que é que você procura? Uma despedida, um alento, uma desculpa, um sentido? Qual é o propósito disso tudo? Qual é o seu ganho com esta situação? Você só tem a perder, aliás, você só perdeu. Não bastam as coisas já serem tão difíceis como sempre foram? Por que vocês, pessoas, nunca descansam, nunca suspendem esse fluxo teimoso de julgamentos e de desejos? Vocês acabam perdendo a noção da própria lógica. As afeições e os juízos morais se misturam e se confundem de uma forma impressionante. Ao mesmo tempo tão grande coração, ao mesmo tempo tão egoísta. Ao mesmo tempo uma mulher perdida em uma paixão impossível, ao mesmo tempo uma menina esquecida junto à contagem ordinária dos anos. Isso não é suficiente para você?

Pára. Escute-me, sua tonta. Quando foi que você esqueceu que tem apenas treze anos? Ora, você não pode agir assim, pode? Não adianta às pessoas que elas comportem-se como animais; sempre, sempre lhe disse isso – diabos, é exatamente isso que você deveria ter aprendido, pois é isso que lhe foi ensinado neste lugar. Não importa nem como as coisas são, nem porque, mas o que fazemos a partir delas. Está certo que, de alguma forma, suas ciências desenvolveram-se muito habilmente, e você é capaz de ludibriar alguns tolos quanto à sua real identidade. Mas o Sistema está além disso, está além de você, está além de qualquer cenário que você tenha imaginado em suas fantasias pueris com aquele homem e com qualquer outro homem. Não, eu não quero saber se você o amava ou não, mesmo porque essas declarações não valem nada para Eles. O que você faz ou deixa de fazer para si própria pode não ser da minha conta, muito menos da minha responsabilidade. Vocês ganharam a independência há mais de um século – embora, eu deva admitir, dada sua condição, que um novo preceito deveria ser aberto. Mudaram suas obrigações, mudaram suas esferas de ação política e até mesmo foram mudadas leis que jamais lhe diriam respeito, mas que, por conveniência política, ultrapassaram o senso lógico comum.

Por que você me olha desse jeito? A Natureza lhe deu o direito de ser como você é, mas não é Ela quem rege os homens. Não agora, e você sabe muito bem disso. Não chore, não ouse chorar. É por sua causa que um homem vai morrer amanhã, e nada pode apagar este fato por si. A Justiça é muito mais velha do que você. Então, se você tem o destemor de quem vivesse numa anarquia, se você se dá ao luxo de querer agir sem compromisso com as conseqüencias, demonstre um mínimo de honra e coragem face ao seu destino. Melhor, o destino de outro. Sim, um outro. Cale-se, idiota, eu já lhe disse que esses predicados de nada valem, nunca valeram. Não há sociedade que se baseie nessas particularidades que vocês, crianças, tanto valorizam. Não há maneira de haver Ordem sem um encontro com os valores mais fundamentais da vida humana, Rose. E o que é que você não compreende disso tudo? Não conseguiria ser mais clara com você do que isto. Escute, eu não quero saber o que aquele homem pensa. Ademais, eu não daria atenção àlguma à carta escrita por um moribundo, fosse quem fosse. Você sabe que, apesar de tudo, sinto muita pena dele, e este sentimento me basta. Um bombeiro deveria merecer uma morte mais digna. E quando digo isto, não estou preocupada com o método utilizado, mas sim com o fato decisivo para tal sentença.

Ainda não consigo acreditar... simplesmente não consigo acreditar. Quando penso em você, já sei exatamente todas as razões implícitas para uma decisão tão estúpida, e acabei de referi-las quase todas. Porém, quando penso neste homem... Ora, não fale esta palavra perto de mim, não a repita mais uma vez sequer. Não se atreva, Rose. Desde o dia em que soubemos de sua anomalia, eu prometi a Deus dar o mundo para que você se desenvolvesse da melhor maneira possível. E você não era feliz, Rose? Você não era? Você não tinha uma vida pela frente, não tinha sonhos? E o que lhe resta agora, Rose? Oh, Deus, por quê...


Quando o primeiro zero da meia-noite de sábado transformou-se em um, aquele homem já estava morto. Ele não proferiu nenhuma última sentença, nenhum discurso final, nem agonizou, e seu cadáver jamais sofreu espasmo algum. Certas pessoas chegaram a dizer que ele não esperava nada do outro lado. A maioria delas desejava, posto assim, que o homem ardesse no mais lívido Inferno. Quanto à anomalia de Rose, ela não foi totalmente controlada, mas pouquíssimos casos se repetiram nesta Era, enquanto que aquela seria a última condenação capital por pedofilia sob tal Constituição.


Renan Santos