Diário de um morto vivo (Parte II)

Meu primeiro assassinato

O sangue do meu "senhor" - assim é chamado, segundo a milenar tradição dos mortos vivos, pelo vampiro que foi criado ao vampiro que o criou - era e é para mim uma necessidade e uma dádiva da qual eu era o mais dependente dos viciados, o mais escravizado dos escravos.

Ainda assim, ele tirou seu braço da minha boca e impediu que eu continuasse minha alimentação, muito antes de eu estar saciado. Não havia bebido muito mais do que o necessário para ter passado pela transformação. Como resultado, eu me encontrava desesperadamente faminto por sangue, e ele sabia muito bem disso, pois, conforme ele mesmo me disse depois, a primeira fome de um vampiro recém criado é a mais forte de todas.

Mas Gerard, em sua generosidade, ou segundo o seu próprio conceito deformado e cínico de generosidade, não me deixara de todo desamparado. Ele me pediu para segui-lo, pois havia preparado uma surpresa para mim. E assim eu fiz, com a inocência e a confiança de uma criança pequena que acompanha a sua mãe.

Saímos de minha residência e passamos por três quarteirões até chegarmos a um beco escuro, onde costumavam ficar mendigos, vagabundos e outros elementos marginalizados pela sociedade. À noite, porém, era evitada até mesmo por esses elementos. Andamos pelo beco, "mal-assombrado", diriam, não sem razão, até chegarmos a um homem, um pobre diabo que eu não podia ter certeza se era um mendigo ou não.

Ele estava deitado e imobilizado no chão, amarrado e amordaçado. Ao nos ver, ou ver os nossos vultos, já que a claridade era escassa, ele começou a gemer, se debater, e a nos olhar como se implorasse por nossa misericórdia. Gerard olhou pra mim, sorriu e disse: "Vamos, minha criança. Hora de satisfazer sua fome."

Ao ouvir tais palavras, olhei para o homem e o seu olhar era de um completo desespero. Na verdade, seus olhos pareciam pular para fora das órbitas ao sentir a morte cortejá-lo tão de perto. O que eu estava prestes a fazer era horrível, mas na condição em que eu estava, creio que se fosse até um parente próximo no lugar daquele pobre homem, eu teria feito do mesmo jeito.

Sem pensar muito, senti minhas presas crescerem afiadas, obedecendo ao meu instinto assassino. A essa hora, o homem se debatia com toda a força e tentava gritar. Em uma fração de segundos, eu já estava em seu pescoço.

O deleite que eu obtinha através daquele sacrifício fazia eu esquecer todos os dilemas morais e éticos da prática daquele crime. Havia um prazer demoníaco em sentir o seu sangue fluir para dentro de mim, e mesmo ao sentir o coração, antes pulsando descontrolado devido ao pavor, ir reduzindo sua intensidade gradativamente, até cessar totalmente sua atividade.

Quando terminei meu banquete, ou, mais apropriadamente chamando, minha orgia, tinha em meus braços um cadáver que estava no mesmo estado em que Gerard anteriormente havia me deixado.

— Muito bem, minha criança! - era Gerard, bastante satisfeito em assistir minha degeneração - Estou vendo que eu não estava errado a seu respeito. Você será um ótimo vampiro! Formidável!

Eu o olhei e meu semblante transmitia o que eu sentia, finalizado o meu banquete: um misto de profunda decepção e perplexidade.

— John? John, meu amado John! Nós somos o que somos, somos predadores, estamos no topo da cadeia alimentar. Sentimentos como a compaixão não são mais adequados a nós. Deve, por acaso, o predador sentir compaixão por sua presa? Se os humanos não querem morrer, que não cruzem o nosso caminho! Você não é mais humano, portanto não é mais conveniente que fique preso a ideias humanitárias. John, meu querido, vou lhe ensinar tudo o que você precisa saber para ser um bom vampiro. Seremos companheiros por toda a eternidade!

Pensei em dizer algo como "Fico feliz por você ter deixado eu decidir o meu próprio destino", mas contive a provocação em meu pensamento, ponderando não ser prudente verbalizá-la. Limitei-me a sorrir, exibindo uma falsa complacência, da qual Gerard não tinha motivos para suspeitar.

Mas ele havia se enganado a meu respeito. Eu não era o predador frio e desumano que ele havia vislumbrado, a partir da leitura de meus livros que, reconheço, possuem um considerável apelo macabro. Ao contrário, a imagem daquele homem indefeso e apavorado que lutava desesperadamente pela vida, e que mesmo assim eu assassinei covardemente, vem me assombrar todas as noites.

Por quanto tempo terei que conviver com essa lembrança? Temo que nem o passar dos anos e mesmo séculos poderá apagá-la.

Josué

Diário de um morto vivo - parte 1

Londres, março de 1880

O que eu me tornei

Faz exatamente dois meses que minha vida tornou-se um drama quixotesco de dimensões surreais. Não que ela antes tenha sido plenamente satisfatória. Assim é a vida dos seres humanos: ilhas de felicidade em meio a oceanos de sofrimento e tristeza.

Assim era a minha vida também. Há dois meses, no entanto, eu fui definitivamente apartado da condição de ser humano. Sim, é isso, é essa a verdade, por mais inacreditável que
possa parecer. Agora não sou mais um homem: sou um monstro morto-vivo bebedor de sangue ou, como é mais popularmente conhecido, um vampiro.

Tal fato consumado encerra em si mesmo conseqüências devastadoras. Se os vampiros, que até o dia de minha derradeira transformação eu julgava serem meras lendas e superstições de época pretéritas, são reais, o que dizer de outras criaturas igualmente dadas como mitológicas? O que dizer a respeito das bruxas e lobisomens? E que tal anjos e demônios? Fadas, duendes? Já não me espantaria mais descobrir que tudo isso é a mais pura realidade.



Sobre minha transformação

Gerard. Apenas Gerard. Foi assim que se apresentou a mim aquele que me jogou, sem aviso prévio e sem pedir minha opinião, no trágico e absurdo mundo dos predadores noturnos, das bestas sobrenaturais que coabitam o mundo junto às suas vítimas humanas, tais quais lobos em pele de cordeiro.

"Mas por quê? Por que eu?" - foi a primeira pergunta que me veio à mente, logo depois de ter morrido como humano e renascido como um monstro. Eu havia acabado de chegar em minha casa, na pequena cidade universitária de Osford, depois de ter passado a noite bebendo na taberna. Eu me encontrava naquele familiar estado de euforia que somente o álcool pode proporcionar. Não fazia quinze minutos que havia chegado e, estando deitado em meu leito sentindo a cabeça rodar, eis que ouço alguém bater à minha porta.

Cambaleando, me levanto para atender, e talvez por me encontrar sob efeito da embriaguez, não atino com o perigo de receber visitas à noite. Olhando pela janela, reconheci o semblante de um dos boêmios com quem havia estado na taberna, e convenci-me de que não havia motivo para maiores temores. Abri a porta e saudei meu visitante noturno.

— Pois não?

— John Brandom Blair? - responde ele.

— Sim. Esse é o meu nome. Perdoe-me, mas o seu é...?

— Gerard.

— Está certo... Gerard. A que devo sua visita?

— Estive com você na taberna, e...

— Sim, eu me lembro de ter te visto por lá.

— Eu sou um grande admirador da sua obra. Eu tenho todos os seus livros... posso te dizer sem medo que você é um grande escritor e um grande artista. Na verdade, creio eu, o melhor escritor que há nessa ilha.

— Muito obrigado... devo dizer que seus elogios muito me agradam. Porém, devo dizer também que você me tem em demasiada alta conta, e que não sou, portanto, merecedor de tanta deferência. Sou apenas um escritor mediano, jamais chegarei ao nível de um dos grandes como Byron.E nesse momento em particular, sou apenas um bêbado...

— Sua genialidade precisa ser preservada pra sempre, e é por isso que eu estou aqui...

— Bem... creio que, quanto a isso, não está ao meu alcance, nem ao seu, nem ao de mais ninguém. O julgamento que a posteridade fará de mim e de minha obra, se é que farão algum, é assunto apenas para eles.

— John... eu lhe darei toda a eternidade, dessa forma seu talento será preservado para sempre. A oferta que eu lhe faço é a mais generosa que alguém algum dia poderia lhe fazer... Por que não me deixa entrar pra que eu lhe explique com mais detalhes?

Em condições normais, talvez eu o teria chamado de louco e o ameaçado caso não fosse embora. Mas a embriaguez, aliado a um estranho e irresistível magnetismo pessoal que emanava de sua personalidade, e que mais tarde eu descobri ser um dos poderes dos vampiros, fez minhas resistências cederem e eu acabei o convidando pra entrar àquela hora da noite, como se fosse ele um velho amigo e não um estranho que eu acabara de conhecer.

Ele entrou, e eu fechei a porta. Eu caminhava à frente, e ele logo atrás de mim. Eu pretendia acender a lareira para sentarmo-nos na sala e conversar sobre o que lá ele queria me propor. Antes disso, ele me envolveu com um dos braços, imobilizando-me, e com o outro tapou minha boca. Tentei gritar e me debater, mas já era tarde. Ele aproximou sua boca de meu pescoço, e com seus caninos afiados que haviam acabado de se pronunciar, me mordeu bem na veia jugular.

Enquanto o meu sangue jorrava em sua boca e ele o engolia com uma voracidade que somente um monstro poderia ter, o meu corpo e minha alma encontravam-se numa lassidão cada vez maior, como se a morte nada mais fosse do que mergulhar num sono profundo.

Quando ele terminou o que estava fazendo, meu corpo era um cadáver sem uma gota de sangue e minha alma se encontrava num profundo sentimento de paz, preparando-se para entrar no outro mundo.

Eis então que eu me sinto ser violentamente trazido de volta para dentro de meu corpo, acompanhado por uma terrível sensação de desespero frente à presença de algo demoníaco. Quando me dou por mim, estou sugando o sangue diretamente do pulso de Gerard. Pela primeira vez eu sentia o que era, para um vampiro, a experiência de beber sangue.

Seria tão difícil explicar isso para alguém que nunca teve essa experiência quanto seria explicar para um cego de nascença o que é ver. Aquilo consistia de uma experiência extremamente mística e sensual, e acima de tudo, o ato de saciar uma fome avassaladora. Eu compreendera, naquele momento, que enquanto estivesse naquela condição amaldiçoada, o sangue seria muito mais do que o análogo à satisfação de uma necessidade fisiológica num organismo vivo. Aquilo era, e é, uma necessidade maior que todas as necessidades dos seres vivos juntas, e um vício, uma compulsão, da qual nem o mais resoluto dos homens, nem a mais inabalável das vontades poderia resistir.

Foi então que ecoou em minha mente aquela pergunta: "Por quê?" Mas ela não se dirigia ao monstro que havia acabado de me transformar em outro monstro. Ela se dirigia ao Todo-Poderoso, que agora, tal qual o próprio demônio, eu tinha certeza ser bastante real.

Josué

Uma história em um trem

— Eu sei que você a matou – disse Evelyn, com um sorriso apertado.

Foster tremera, seu mundo parecendo chacoalhar junto com o trem. Há pouco haviam se conhecido; ela, que se sentara na poltrona vazia bem à sua frente e puxara uma longa, agradável e suave conversa sobre vinhos e férias, agora falava de forma extremamente direta e seca, afirmando coisa séria.

— Como é que é? – perguntou ele, fechando o cenho, como se tivesse recém acordado de um sono profundo.

— Você não me engana. Eu sei que a matou.

O sorriso macabro e genuinamente feminino ficara ainda mais delineado. As sombras no seu rosto ganhavam em intensidade. Foster tremeu mais uma vez, e seus batimentos pareceram duplicar. Um suor nervoso brotou rapidamente do rosto, oscilando desde a sombra sob o chapéu até o pescoço pulsante. Haviam bastado seis singelas palavras para que as coisas tomassem outro sentido. Bastara uma pequena frase para que a bela, agradável e desconhecida Evelyn se tornasse imediatamente o seu pior medo.

Ela era alta e loira, os cabelos cacheados, atirados por sobre o tronco esbelto, os olhos azuis como o mar. O rosto ganhava ainda mais cores com a luz do crepúsculo adentrando o vagão, num jogo de iluminação compensada, poética, vagando entre o amarelo opaco de sobre as poltronas e o dourado puro vindo da paisagem lá fora. Foster lembrara-se de já tê-la visto na estação, embarcando, ainda na Filadélfia. Como uma garça, ela carregava no porte esguio o seu longo e elegante vestido azul claro, caminhando com leveza, sem malas, sem nada. Uma hora depois ela se aproximara de Foster assim que ele havia acordado de um cochilo leve mas problemático, e só aquele semblante angelical poderia interrompê-lo de forma pacífica. Cordial e extremamente educada, ela se apresentou, reclamando do tédio em viajar sozinha, e logo começaram a conversar. Não que Foster conseguisse prestar muita atenção a exatamente que safras de uvas o ex-sogro de Evelyn cultivara lá na Califórnia e a precisamente que cidades canadenses ela havia viajado no último ano, mas o homem se interessara muito. Pintava sua visão com a beleza misteriosa dela e mergulhava cada vez mais no azul hipnotizante daqueles olhos, até que foi desperto do transe.

Antes que Evelyn despejasse a acusação ex nihilo, a conversa havia chegado a um raro momento de silêncio, Foster vislumbrando o outono da costa leste com um sorriso tímido. Já estivera bem mais nervoso logo que ela havia cruzado as pernas ao sentar na poltrona à sua frente. Por isso, agora ele tinha a impressão de que a mulher estivera o tempo todo lhe amansando para que seu coração recebesse o baque com muito mais impacto, pois que totalmente despreparado.

— Não me pergunte porque, Foster. Mas eu sei – continuou ela, aos poucos o sorriso cínico dando lugar à uma expressão cerradíssima, a pior que Foster vira desde que tomara seu último copo sujo de uísque no Holy Water, ainda lá no centro escuro da Filadélfia.

E de fato ele não perguntou por quê. Ele não queria saber. Só lhe importava agora o que faria com aquela mulher. Foster é quem sorria agora, as bochechas tremendo no mais puro nervosismo. Ele sabia de sua fraqueza, mas precisava impor respeito imediatamente.

— Você sabe, meu amor... estivesse eu sentado na poltrona da minha casinha ainda, lá atrás, há horas de viagem, pensaria que isso é algum tipo de alucinação. Provavelmente estaria encarando agora o meu belo amigo Chivas, culpando-o mais uma vez pelos meus problemas. Normalmente eu rio quando vejo essas coisas, entende. Bom, eu não pareço estar rindo e nem tenho a porra de um copo cheio de gelo na minha mão. Então, se não estou louco, você é quem está.

Evelyn riu, baixinho, levando a mão delicada até a boca vermelha. As luvas brancas de seda fina pareciam armas de graça ilusora, dançando em frente ao colo e ao rosto.

— Nós dois sabemos disso, Foster. Você não tem porque ficar nervoso.

Ele se curvou por sobre a mesinha que os separava, vermelho e tremendo.

— Você não sabe porra nenhuma de mim, sua... – iria soltar os pulmões não fosse a aproximação repentina do garçom, que trazia uma bandeja com vinho e taças.

— Algum problema, senhor? – perguntou, notando o total desconforto de Foster, que suava debaixo do capote pardo. Foster cerrou os lábios e foi se acomodando novamente na poltrona, sem jeito. Balançou a cabeça. O garçom olhou desconfiado para a beleza magnificente da mulher – Bem, peço perdão; gostaria de saber se os senhores aceitam uma taça de vinho tinto?

Foster fez sinal negativo mais uma vez, sem paciência alguma. Retirou com veemência o chapéu e acomodou-o no colo. Encarou o carpete vermelho do chão e viu os pés sensuais de Evelyn aterrisarem detrás das patas da mesinha, os grandes saltos de bico fino maculando o veludo do tapete.

— Oh, é o nosso bom Cabernet? – falou ela, com uma jovialidade descarada.

— Sim, senhorita. Safra de 49.

— Maravilha. Sirva-me uma taça, por favor – o garçou inclinou-se para servi-la – o Cabernet é o rei das uvas roxas. Já lhe contei como são as uvas roxas lá na terra do meu pai, Foster? Nos terroirs além da costa, o sol e a chuva convivem de forma interessante, muito harmônica. Os ventos do Pacífico ajudam a refrescar as uvas, e elas adquirem uma cor impressionante. É um roxo orgânico, diferente desse roxo que vemos nos tecidos, é algo brilhante, respirando vida, a mais pura vida.

Foster nutria agora muito ódio pela falsidade que sentia emanar de voz tão suave. O que fora oculto e antes produto de uma mente eternamente desconfiada era no momento um grito de falsidade em cada sílaba, em cada pausa, em cada tom. Foster ergueu o olhar e contemplou os lábios que se molhavam na borda da taça de cristal. Mais vermelhos do que sempre, eles agora brilhavam sob a luz do vagão, enquanto o Sol finalmente abandonava o trem naquele início de noite. O garçom calmamente se retirou.

— Delicioso. Mas eu sinto por aquelas uvas sacrificadas. Eu realmente sinto. Deveríamos oferecer o sangue dessas uvas em sua honra.

Evelyn o fitava com olhos ainda mais penetrantes, como que contornados à bico de pena. A boca se tornara substancial, os cantos se erguendo vagarosamente para formar um novo tipo de sorriso. Uma pequena língua molhada de vinho se projetou para fora, viajando de um lado ao outro por entre a carne vermelha. Foster a encarava em transe, inconsciente. Ela segurava a taça diante do pescoço, como se fosse entorná-la novamente a qualquer momento.

— Você é fraco. Você não pode comigo. Não percebe isso? Eu não sou como Dorothy, Foster.

— Como diabos você conhece Dorothy? Eu nunca vi você na minha vida, demônio. Como você sabe de mim?

— Isso não importa, não é? – ela agora balançava a taça em pequeninos círculos, o líquido escuro dançando como sangue no cristal. Inspirou o buquê profundamente, quase ao nível do êxtase. Foster sentiu um repentino cheiro de ferrugem. O que importa é o que eu sei. E eu sei o suficiente.

— Você me seguiu. Você está neste trem unicamente pra me ameaçar. Por que você não falou desde o início o que tinha pra falar, por que está me enrolando desse jeito, sua vagabunda? E pare de mexer a porra dessa taça!

Evelyn parou, levando aos lábios o dedo indicador da outra mão, pedindo a Foster que fizesse silêncio, e ele baixou a guarda, voltando a se atirar na poltrona. Coçou fervorosamente a lateral grisalha da cabeça enquanto com a outra mão começava a puxar desajeitado alguns botões do capote. Forçou abruptamente a gravata, afrouxando a gola, e suspirou. A penumbra lá fora se preparava para se transformar na escuridão da noite. Algumas luzes vacilavam entre o contorno das colinas. Árvores disformes zuniam diante da janela. Conformado, Foster fez a pergunta inescapável, com os olhos no mundo exterior, enquanto a mente ainda trafegava pelo interior do trem, sem saída:

— O que você quer?

— Você é um bom homem, Foster. Não se desgrace pelo que fez – Evelyn bebeu mais um pouco do vinho, calma como pouca coisa naquele momento. Os trilhos retumbavam vez ou outra debaixo dos pés – Você estava alterado, fora de si. Além disso, nada anda muito bem pra você há muito tempo, não é mesmo? Todos nós esperamos que aquelas pessoas que nos são próximas venham a nos dar um ombro para enxugarmos nossas lágrimas. Com você não foi assim, não é mesmo, Foster?

Não fosse pela voz branda e estranhamente sensual, Foster sentiria ouvir a si mesmo, em mais um de seus monólogos intermináveis. Agora já se passavam quatro horas sem tocar os lábios no álcool. Não estava louco, sabia disso. Com as mãos enfiadas num dos tantos bolsos de seu capote, afundava sob seus próprios tecidos no canto da janela, encarando os lábios molhados de Evelyn se mexerem com uma segurança espantosa. O olhar dela é que mudara. As sombrancelhas haviam caído um pouco, num esboço de piedade.

— Você e Dorothy juntos eram incríveis. Havia poesia em seus olhos, havia um amor incomensurável, havia admiração. Porém, de algum jeito as coisas tinham que mudar, não é, Foster?

O homem começara a se desmanchar com as últimas palavras. Cada vez mais prostrado no canto da poltrona, sem reação, ele parecia mingüar ao lembrar de sua amada Dorothy.

— O crime lhe fez mudar. Você foi lentamente corrompido pela própria justiça que decidiu impor. Você viu coisas que lhe fizeram perder muitos dos seus critérios, que lhe fizeram perder o próprio senso do justo. Foi isso que você falou a Dorothy. Mas você nunca soube se ela acreditou, porque ela já tinha outra pessoa quando você pensou em se recuperar. Você a perdeu, detetive. E agora acha que vai resolver tudo se for bater na porta dela lá em Boston.

Foster arregalou os olhos. De repente aquele rosto nobre e voluptuoso ficou mais familiar do que nunca.

— Eu conheço você. Você é Gloria, a amiga de Dorothy! Eu sabia! Você morava no apartamento bem em frente ao nosso. Trezentos e...

— Dois. Exatamente. Não esperava que fosse lembrar de mim – mentiu; aqueles olhos retomaram a grande astúcia, e Foster recuou – Como você costumava dizer mesmo? “O álcool apaga a memória e outras coisas que não me recordo”?

— “Que não me lembro mais”. Piranha. Você me persegue há quanto tempo?

Gloria soltou mais uma de suas risadas curtas e graciosamente irritantes. Pousou finalmente a taça quase vazia na mesinha de centro, sob o olhar atento e irado de Foster. O enorme decote invadia o seu campo de visão enquanto ela se curvava. Voltando a confortar-se em sua poltrona, Evelyn abriu os braços, relaxada, o lindo pescoço totalmente à mostra, confiscado pela luz amarela.

— Você é tão rancoroso, nossa. Comigo você terá que ser diferente se quiser reconquistar pelo menos o respeito de sua amada Dorothy.

— Por que você não vai e conta logo a ela tudo o que eu fiz?

— Não, meu caro detetive. Eu não quero que a verdade apareça por suas costas. Você pode não acreditar, mas eu quero lhe ajudar.

Foster rapidamente respondeu com um som de deboche, disparando saliva por entre os lábios.

— Se você quer ganhar o respeito de Dorothy de novo, você terá que ser sincero e justo, como sempre teve vontade, sem que conseguisse. Você contará a ela o que fez, Foster. Contará tudinho.

— Eu não tenho saída, não é?

— Não. Na verdade, você tem menos saída ainda do que imagina. Porque há mais uma condição para que eu não conte a verdade no seu lugar.

Então, Gloria lentamente ergueu a taça da mesinha e, ainda encarando Foster, derramou sobre os seios o que restara de vinho. Cada gota vermelha dançou por sobre as curvas e escorreu dentro do vale, eriçando minúsculos pêlos nas cercanias dos mamilos que saltavam por debaixo do vestido.

As mãos de Foster se mexeram, inquietas dentro dos bolsos. O homem, ainda suando muito, aprumou-se novamente na poltrona. Fitava cada movimento do vinho por dentro do decote e ao redor dos seios, cada gota escura que maculava pele e vestido, antes tão suaves ao olhar. Por fim, voltava a encarar o azul brilhante ao redor daquelas íris tão femininas, lindíssimas. Um perfume inédito tomava conta do ar.
Gloria deixou cair a taça vazia ao seu lado e agarrou o encosto da poltrona, projetando os seios à frente. A boca, semiaberta, parecia maior e mais suculenta.

— Vamos, detetive. Desde o primeiro segundo eu soube que você me queria.

A expressão de Foster congelara todos os músculos da face. Apenas o suor mantinha-se vivo.

— Vamos, Foster. Se quisesse mesmo acabar comigo, já teria apontado a Colt que tem aí debaixo do casaco. Você é um bom homem. Você errou, mas é um bom homem.

— Você está enganada.

Foster saltou como um gato pra cima de Gloria, pega totalmente de surpresa. Antes que ela sequer pudesse mexer os braços, uma enorme faca foi enterrada em seu pescoço de seda. O homem cerrou os dentes, segurando o máximo que pôde a própria fúria titânica. Assim que a ponta da afiadíssima lâmina atravessou a carne do lado oposto, Foster tirou a mão daquela boca que tanto havia desejado. Puxou a faca com força, admirando o estrago que havia feito no seu inimigo. As cordas vocais, donas de voz tão sensual e ameaçadora, agora pendiam como gordura dentro da garganta aberta. Ele não deixou que ela sequer tivesse a reação típica da luta pela sobrevivência. Segurou os braços de Gloria na mesma posição que estavam, enquanto assistia o sangue se esvair em grandes jorros, banhando de vermelho a poltrona e o corpo tão novo, tão lindo. Focando-se nos belos olhos, agora mais escancarados do que nunca, Foster pôde ver seu reflexo em meio ao azul, que empalidecia. Ao encarar seu próprio sorriso, recuou, assustado. Foi até a porta de correr do quarto e a fechou, passando a chave.

Quando finalmente cessaram os esguichos mais lívidos de sangue, Foster sentiu-se pronto para remover o corpo da poltrona. Puxou o cadáver com rapidez, sem cerimônias, arrastando-o pelos braços até o minúsculo banheiro.

— Você não me queria, vagabunda? Não me queria? – urrava por entre os dentes cada vez mais comprimidos.

Foster a pôs de quatro, apoiando-a na pia, e, no impulso, levantou a saia manchada de vermelho. Ela estava sem calcinha, e ele, excitado já há um bom tempo, não demorou a penetrá-la. Com as mãos contra a pia, o homem se debruçou sobre Gloria e estocou diversas vezes na carne morta, sem resposta, sem outro movimento que não o dele. O gozo mórbido não demorou a chegar, e, assim que um longo arrepio trafegou pela coluna de Foster, ele se deitou sobre o corpo imóvel. Chorou, chorou muito. Por vários minutos ainda misturou suas lágrimas ao sangue de Dorothy, erguendo vez ou outra o olhar para si mesmo no espelho. Quando o nojo decidiu aparecer, Foster se levantou. Contemplava apavorado a obra em vermelho que recém pintara no recinto. Tomou o vinho que restava na taça. Já era tarde.

Ninguém precisou acusá-lo do crime que cometera na Filadélfia horas antes de embarcar no trem para Boston. A arma usada e uma calcinha com o nome de Glória repousavam em suas mãos enquanto ele dormia profundamente em uma das poltronas. Foster era o último passageiro a abandonar a viagem.
O detetive nunca mais viu o rosto de Dorothy. Nunca soube o paradeiro dela, e ninguém veio libertá-lo da cadeia. Alguns dias depois o encontraram pendurado pelo pescoço a um trapo de roupa em sua cela, balançando pra lá e pra cá. No chão, escrevera uma palavra a sangue:

Liberdade.



Renan Santos