Diário de um morto vivo - parte 1

Londres, março de 1880

O que eu me tornei

Faz exatamente dois meses que minha vida tornou-se um drama quixotesco de dimensões surreais. Não que ela antes tenha sido plenamente satisfatória. Assim é a vida dos seres humanos: ilhas de felicidade em meio a oceanos de sofrimento e tristeza.

Assim era a minha vida também. Há dois meses, no entanto, eu fui definitivamente apartado da condição de ser humano. Sim, é isso, é essa a verdade, por mais inacreditável que
possa parecer. Agora não sou mais um homem: sou um monstro morto-vivo bebedor de sangue ou, como é mais popularmente conhecido, um vampiro.

Tal fato consumado encerra em si mesmo conseqüências devastadoras. Se os vampiros, que até o dia de minha derradeira transformação eu julgava serem meras lendas e superstições de época pretéritas, são reais, o que dizer de outras criaturas igualmente dadas como mitológicas? O que dizer a respeito das bruxas e lobisomens? E que tal anjos e demônios? Fadas, duendes? Já não me espantaria mais descobrir que tudo isso é a mais pura realidade.



Sobre minha transformação

Gerard. Apenas Gerard. Foi assim que se apresentou a mim aquele que me jogou, sem aviso prévio e sem pedir minha opinião, no trágico e absurdo mundo dos predadores noturnos, das bestas sobrenaturais que coabitam o mundo junto às suas vítimas humanas, tais quais lobos em pele de cordeiro.

"Mas por quê? Por que eu?" - foi a primeira pergunta que me veio à mente, logo depois de ter morrido como humano e renascido como um monstro. Eu havia acabado de chegar em minha casa, na pequena cidade universitária de Osford, depois de ter passado a noite bebendo na taberna. Eu me encontrava naquele familiar estado de euforia que somente o álcool pode proporcionar. Não fazia quinze minutos que havia chegado e, estando deitado em meu leito sentindo a cabeça rodar, eis que ouço alguém bater à minha porta.

Cambaleando, me levanto para atender, e talvez por me encontrar sob efeito da embriaguez, não atino com o perigo de receber visitas à noite. Olhando pela janela, reconheci o semblante de um dos boêmios com quem havia estado na taberna, e convenci-me de que não havia motivo para maiores temores. Abri a porta e saudei meu visitante noturno.

— Pois não?

— John Brandom Blair? - responde ele.

— Sim. Esse é o meu nome. Perdoe-me, mas o seu é...?

— Gerard.

— Está certo... Gerard. A que devo sua visita?

— Estive com você na taberna, e...

— Sim, eu me lembro de ter te visto por lá.

— Eu sou um grande admirador da sua obra. Eu tenho todos os seus livros... posso te dizer sem medo que você é um grande escritor e um grande artista. Na verdade, creio eu, o melhor escritor que há nessa ilha.

— Muito obrigado... devo dizer que seus elogios muito me agradam. Porém, devo dizer também que você me tem em demasiada alta conta, e que não sou, portanto, merecedor de tanta deferência. Sou apenas um escritor mediano, jamais chegarei ao nível de um dos grandes como Byron.E nesse momento em particular, sou apenas um bêbado...

— Sua genialidade precisa ser preservada pra sempre, e é por isso que eu estou aqui...

— Bem... creio que, quanto a isso, não está ao meu alcance, nem ao seu, nem ao de mais ninguém. O julgamento que a posteridade fará de mim e de minha obra, se é que farão algum, é assunto apenas para eles.

— John... eu lhe darei toda a eternidade, dessa forma seu talento será preservado para sempre. A oferta que eu lhe faço é a mais generosa que alguém algum dia poderia lhe fazer... Por que não me deixa entrar pra que eu lhe explique com mais detalhes?

Em condições normais, talvez eu o teria chamado de louco e o ameaçado caso não fosse embora. Mas a embriaguez, aliado a um estranho e irresistível magnetismo pessoal que emanava de sua personalidade, e que mais tarde eu descobri ser um dos poderes dos vampiros, fez minhas resistências cederem e eu acabei o convidando pra entrar àquela hora da noite, como se fosse ele um velho amigo e não um estranho que eu acabara de conhecer.

Ele entrou, e eu fechei a porta. Eu caminhava à frente, e ele logo atrás de mim. Eu pretendia acender a lareira para sentarmo-nos na sala e conversar sobre o que lá ele queria me propor. Antes disso, ele me envolveu com um dos braços, imobilizando-me, e com o outro tapou minha boca. Tentei gritar e me debater, mas já era tarde. Ele aproximou sua boca de meu pescoço, e com seus caninos afiados que haviam acabado de se pronunciar, me mordeu bem na veia jugular.

Enquanto o meu sangue jorrava em sua boca e ele o engolia com uma voracidade que somente um monstro poderia ter, o meu corpo e minha alma encontravam-se numa lassidão cada vez maior, como se a morte nada mais fosse do que mergulhar num sono profundo.

Quando ele terminou o que estava fazendo, meu corpo era um cadáver sem uma gota de sangue e minha alma se encontrava num profundo sentimento de paz, preparando-se para entrar no outro mundo.

Eis então que eu me sinto ser violentamente trazido de volta para dentro de meu corpo, acompanhado por uma terrível sensação de desespero frente à presença de algo demoníaco. Quando me dou por mim, estou sugando o sangue diretamente do pulso de Gerard. Pela primeira vez eu sentia o que era, para um vampiro, a experiência de beber sangue.

Seria tão difícil explicar isso para alguém que nunca teve essa experiência quanto seria explicar para um cego de nascença o que é ver. Aquilo consistia de uma experiência extremamente mística e sensual, e acima de tudo, o ato de saciar uma fome avassaladora. Eu compreendera, naquele momento, que enquanto estivesse naquela condição amaldiçoada, o sangue seria muito mais do que o análogo à satisfação de uma necessidade fisiológica num organismo vivo. Aquilo era, e é, uma necessidade maior que todas as necessidades dos seres vivos juntas, e um vício, uma compulsão, da qual nem o mais resoluto dos homens, nem a mais inabalável das vontades poderia resistir.

Foi então que ecoou em minha mente aquela pergunta: "Por quê?" Mas ela não se dirigia ao monstro que havia acabado de me transformar em outro monstro. Ela se dirigia ao Todo-Poderoso, que agora, tal qual o próprio demônio, eu tinha certeza ser bastante real.

Josué

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