Sultanato

1.

Antes do alarme de seu relógio despertador, seus olhos se abriram e soube que o horário de ir ao seu trabalho aproximara-se. Resolveu interromper o seu galo portátil antes que começasse a cantar e a acordar toda sua família. São, ao todo, junto como cachorro, e sem ele, 8 pessoas. Hoje é dia de pagamento, o que lhe traz uma sensação ambígua. Todo seu pagamento iria para o sustento de seus irmãos, dízimos à Igreja que sua mãe freqüentava, além de remédios e garrafas de bebida para seu padrasto. Olhou, na penumbra, o olhar de um santo, perguntando a si mesmo porque os santos têm olhares piedosos? Há, ainda, em sua casa, vestígios de todas religiões que sua mãe, estoicamente, alternou durante todos os anos. Não era de se espantar que ali, junto à bíblia aberta no salmo 91, houvesse um santo acólito a observar toda a família. Virou-se, pois não gostava de ser encarado – mesmo que esse olhar viesse de um santo – com piedade. Seu bairro passa por dificuldades na transmissão de energia elétrica, por isso há velas disponíveis por toda casa. Pensou em atear fogo sobre si, sobre seus irmãos e mãe, além do padrasto, por onde começaria pelo bigode. Abandou a idéia, porque, além do cheiro insuportável que tal incêndio produziria, ouviu o ruído da chuva, que, naturalmente, apagaria o nascente incêndio – deixando seus 5 irmãos parcialmente deformados, seu padrasto e sua mãe. Teria que encará-los depois, e essa visão era desanimadora. Não nutria ódio por eles, mas uma profunda vontade de tê-los longe. Deformados seriam ainda mais onerosos. Olhou, novamente, toda família em profundo sono, não o sono dos justos, o sono tranqüilo dos abastados, mas um sono apocalíptico; pois cada dia parecia mais uma guerra do que um mero dia. Pensou em acender velas e colocá-las nas mãos dos dormentes para tornar mais luminosas suas vidas-mortas ou mortas-vidas.

Uma vela apaga-se facilmente com um suspiro. A vida humana é consumida como a parafina de uma vela ardendo. Pensou que um suspiro, um suspiro fatal do destino, ou mesmo de Deus, havia apagado a chance de ser consumido como uma vela, pois se atribuía apenas o direito de trabalhar, prover o sustento de sua família e não falar muito, ou reclamar, acreditava que tal situação era imposta por forças exteriores, e encarar, diariamente, o olhar piedoso do santo, era uma terrível ironia que suportaria, mesmo não sabendo o porquê de tal imposição, não iria contestá-la.

Seu barraco, de manhã, tinha o estranho cheiro de café, água-ardente, pomadas, que, juntos, embrulhavam seu estômago, tirando-lhe o apetite matinal que tinha antes do estabelecimento, por definitivo, do homem com o qual sua mãe vive. Esbarrou, sem querer, na bíblia aberta no salmo 91, e, talvez por coincidência, caiu nos trechos finais do apocalipse.

Taças. Sentiu sede, assim como a sede que Jesus experimentou na cruz. Bebeu um gole de café morno, antes de pisar para fora de seu quintal e dirigir-se à estação de trem.

2.

Hoje seria dia de pagamento, o que lhe dava a efêmera sensação de descanso físico-psíquico. O balanço do trem, em dias normais, bem poderia ser comparado aos navios negreiros, mas, quando sabia da eminência de seu pagamento, seu balanço tinha o delicioso balanço das gôndolas vienenses. Ao chegar à construção onde trabalhava como auxiliar de pedreiros, notou uma movimentação estranha, havia pessoas estranhas em seu local de trabalho; um homem de terno, perfumado, saía de um belo carro estacionado do outro lado da rua, e juntava-se aos outros estranhos. O que pretendiam aqueles homens ? Demiti-los? A sensação de uma demissão lhe causara uma ambígua sensação similar à que provou ao pensar no incêndio de sua casa – mas, se houvesse incêndio ou demissão, onde (e do que) viveria? Achou mais prudente não pensar no assunto, passou longe dos homens reunidos próximos à pequena construção onde faziam suas refeições. Seus colegas de trabalho, todos pedreiros de profissão, efusivos desde a manhã, cantando, gritando, falando obscenidades em tom alto, estavam, também, por causa dos homens reunidos, apreensivos, comunicando-se por olhares, cochichos e pequenos empurrões. A visita desses cavalheiros teve o poder de calar seus colegas de trabalho, o que lhe fez pensar que seria um dia ainda mais agradável do que todos os outros.


Na casinha onde faziam suas refeições, já na hora do almoço, todos os autorizados a realizarem o almoço em primeiro tempo, começaram a tecer especulações sobre a vinda dos homens de terno. ‘Marco, você sabe de alguma coisa?’. ‘Não, não sei’. ‘Posso ficar com um pedaço desse seu bife?’. Poderia não dar o bife para seu companheiro, mas sabia que, lhe dando, teria o silêncio do loquaz pedreiro que se punha a imaginar a repentina visita. Os homens de terno, depois de sua saída para almoço, que, aproximadamente, durou 2 horas, voltaram, para depois, definitivamente, partir, deixando-os ainda mais curiosos.


Já estava com a pele coberta de cal, esbranquiçada, o que fazia seus amigos zombarem do contraste de sua escura pele negra com o branco da cal, dando-lhe apelidos pouco convenientes. O que não irritava em si, mas o tom gritante e brusco que eram feitos. Havia, entre eles, dois pedreiros por quem cultiva certo respeito; os dois, além de sérios, contavam-lhe histórias sobre as prostitutas do centro de S. Paulo, sobre preços, sobre a tarifação, sobre como escolhê-las, como diferenciá-las de um travesti e até como pechinchar! Explicaram-lhe, os dois, que as prostituas mais baratas são as melhores e que não há frescuras com elas. Mostraram-lhe, também, que as prostitutas caras, além de frígidas, não faziam, facilmente, as mesmas coisas que as baratas faziam. A despeito da feiúra e repulsa que uma puta barata pode causar, ensinaram-lhe que não se devia ater, por muito tempo, no rosto delas, sob a pena de perder a ereção.

3.

Já tarde, ansiava para pegar o seu pagamento. Recebeu o dinheiro em um envelope branco amassado. Desconfiava sempre da quantidade do dinheiro que ali estava depositado; mas, por precaução (e vergonha), evitara abri-lo diante de seus patrões.

Dentro do ônibus parado em um engarrafamento, pensou, novamente, em sua mãe moribunda: nas religiões que se sucederiam ano após ano; em seu padrasto bêbado, fétido; seus irmãos sujos, maltrapilhos; os remédios, as garrafas de cachaça e dízimos. Lembrou-se de seus amigos, que já contavam experiências sexuais. Contavam-lhe sobre seios, coxas, pernas, orelhas. Diziam sobre o cheiro das mulheres. Detalhes sobre posições. Palavras. Gestos. Já estava cansado de, quase diariamente, masturbar-se e levantar tijolos. Via os carros enfileirados, inertes, buzinando. Os homens esbravejam. O sol se punha no horizonte. O cheiro do suor. Homens desabotoavam alguns botões de suas camisas. Pêlos apareciam. Axilas. O batom das mulheres já não tinha vermelhidão. Eram bocas esmaecidas. Gritou dentro de si: ‘é hoje’. Saiu apressadamente do ônibus, esbarrando nas pessoas, para ir à rua.
Na primeira padaria pediu um copo de conhaque. Bebericou-o. Quase desistiu de terminá-lo. Teve vergonha de não continuar e decidiu, de um único gole, tomar toda a bebida. Perambulou pelo centro da cidade. O efeito do álcool estava surtindo alguma mudança em seu comportamento. Foi até o meretrício, onde podia observar uma mulher que pudesse desvirginá-lo. Olhou-as rapidamente. Decepcionou-se. A maioria era de péssima aparência. Se não fediam, usavam perfumes ainda mais torpes. Algumas tinham dentes de ouro. Outras não tinham todos os dentes. Metade delas tinha pernas grossas, quase bestiais. Caminhavam pesadamente nas esquinas. Peitos que caiam.

Murchos e já anunciando estrias. Não queria concebê-las nuas. Muito menos – mesmo animado momentaneamente pelo conhaque – tinha vontade de se aproximar. Ouviu um homem negociar o preço e percebeu que a quantia era barata para o valor de seu salário. Poderia ludibriar sua mãe e afirmar que havia recebido um salário menor nesse mês. Nesse instante teve medo de contratar um serviço de um travesti, o que lhe fez apertar o passo e sair rapidamente daquele lugar.

Sentiu-se com uma ilha, circundada pela feiúra e fedor por todos os lados. Não haveria belas mulheres no mundo? Não haveria cabelos lisos, claros, unhas limpas, pernas suficientemente grossas sem bestialidade? Colos ebúrneos? Vozes polidas? Perfume?


‘Na Augusta’, pensou. Sim, tinha diante de si a solução e problema, cuja equação jamais poderia resolver: uma noite com uma prostituta deste nível iria lhe levar todos seus rendimentos, obliterando, então, todo estoque de pomadas, remédios, garrafas de pinga e alimentos para sua mãe, padrasto e irmãos. Como poderia encarar Santo Expedito? Como poderia ver as chagas de sua progenitora. Seu padrasto estaria longe do fétido odor dos bêbados? Enquanto pensava nas inúmeras possibilidades, desfavoráveis e favoráveis à sua causa, viu-se diante de mais bela mulher que podia ter diante de si: canelas finas, coxas devidamente talhadas sem a bestialidade e a excessiva magreza; olhos azuis, cabelos castanho-claro; esmalte delicado em dedos pontiagudos. Percebeu que a pequena beldade se aproximava, acompanhada de uma outra mulher. Elas o olhavam. Tinha vergonha e curiosidade, o que lhe fazia desviar o olhar e focar novamente em seus corpos. Rindo elas tocaram em seu braço ‘está perdido?’. Balbuciou algo que não poderia ser definido como ‘sim’ ou ‘não’. Não sabia como lhes perguntar o ‘preço’. Não sabia o que dizer. Se as ofenderia. Se poderia ser recebido. Estavam sorridentes diante de si, mas não as entendia. Suado e esbranquiçado pela cal, parecia um andrajoso mendigo. ‘Gostou de nós?’, perguntaram. ‘Sim.. errrr, qunt.. ‘ Antes de terminar a frase, a mulher dos dedos pontiagudos dizia ‘os negros tem o pinto muito grande... vou cobrar mais caro de você’. Sua amiga soltou uma discreta gargalhada e terminou ‘por isso é que eu vou dar um desconto pra ele... não agüento mais esses brochas, executivos do pau pequeno’.

Antes de gozar ele conheceu o paraíso por cinco minutos.


Thiago Cardoso

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