Fiat Lux

Desde que fiquei cego deixei de fazer a barba. Primeiro, porque não gosto que passem a navalha em meu rosto. Não por medo. O medo, nesse caso, é até estimulante, pois, talvez por erro de destreza, o barbeador falhe em seu ofício e acabe, sem querer, retirando meus 4 sentidos restantes Segundo, pra não ter ter uma barba mal feita. Se não os vejo, eles me vêem, e mesmo um cego se importa com a aparência.

Todos se revezam em fazer minha barba – desde minha mãe, passando por tios, primos e irmã. De todos eles, o toque mais aprazível é o de minha irmã. Sabia o estado emocional de minha irmã através dos cremes que ela usava no corpo, em especial nos braços. Seu namorado, infelizmente, não percebia esses cheiros, porque estaria preocupado em vê-la. Meus tios, já relativamente idosos, tinham um chiado em seu pulmão que me desagradava. Anos de fumo causavam-me uma dupla sensação de nojo: o cheiro da nicotina impregnado em seus corpos e o chiado perturbador de seus pulmões. Esse som era tão forte para um cego que às vezes pensava que sempre que o telefone tocava haveria uma notícia de câncer no pulmão. O que não ocorreu. Não gosto de enterro. Desde minha cegueira não fui a um enterro. Não desejo que nenhum de meus tios morra. Não suportaria o cheiro de nicotina, formol, flores e o resmungo fingido de minha parentela.

Não sei qual aparência que tenho. Se é repugnante, trágica, cômica ou indiferente ao observador. Além da barba, sei que sou magro. Também cultivo o hábito de tentar lamber meu cotovelo e nessas tentativas deparo-me um braço delgado. Sou magro porque, defecar, para mim, é um suplício. O cheiro de excrementos é repulsivo e desde então tenho evitado comer. É previsível que minha maior atração seja a música. Depois que fiquei cego joguei fora todos meus antigos discos, e, com a indenização eu ganhei da fábrica, passei a ouvir apenas música erudita. Não por esnobismo, mas era a única possível de ser ouvida – além de bem compostas, eram bem executadas. O que não ocorria com o prazer hormonal que tinha ao ouvir rock. Gosto do cheiro de café. O café substituiu o sol para mim. Voltei a morar com meus pais, e sempre que sinto o forte cheiro de café, levanto-me e encontro o bule onde quer que esteja. Apenas o café. O cigarro abandonei, por medo de ter minha barba em chamas. (Ou aquele câncer pulmonar).

Hoje fui caminhar na praça mais próxima. Ouvi alguns trovões, o que me fez procurar algum lugar para ficar. Não gosto de entrar em bares, padarias, ou locais que vendam comida. Não gosto de lojas. O zumzum das mulheres me enerva. Sabia que do outro lado da calçada havia uma igreja, mas gostaria de evitá-la. Não pelo óbvio motivo de culpar a Deus por minha cegueira, mas porque, se há algo insuportável, são os gemidos dos fiéis. Esse gemido anti-erótico, dos cães e dos homens. A chuva caiu. Não pude evitar. Atravessei a rua com auxílio de alguém que cheirava salsicha e purê – um degustador de cachorro-quente, com certeza. Entrei na Igreja. Estava silenciosa; um silêncio tão abissal que parecia o início dos tempos. Sentei-me no primeiro banco que pude encontrar. Sei que as igrejas católicas possuem as cenas da vida de Cristo. Mas não poderia vê-las. Nunca me interessei por religião. Não sou ateu, ou crédulo. A existência ou inexistência de Deus em nada alteraria a minha existência. O que ocorre aqui não é uma fé ou descrença em Deus, mais uma sensação - agora ainda mais forte - da fé e descrença em minha existência. Crer em si mesmo com visão é difícil. Crer em si mesmo, cego, é ainda mais difícil, o que fez daquele silêncio um indício de minha inexistência.

Levantei-me para ouvir meus passos. Pensei que deveria ter saído de casa com sapatos. Os tênis que uso não fazem tanto barulho no chão; já um sapato o faria melhor e eu teria algum som para ouvir dentro dessa Igreja amedrontadora. Não sabia se havia pessoas por perto – então, não poderia bater os pés com força para ser ouvido. Nem a bengala. Pensariam que, além de cego, sou doido.

Não pude agüentar muito tempo – o silêncio me sufocava. Me sufocava de tal forma que desabotoei a jaqueta e comecei, a contragosto, bater com minha bengala no chão. Um homem segurou meus braços, e perguntou “o senhor está se sentido bem?” Disse que tinha asma e que gostaria de tocar em algum santo, ou em uma imagem, qualquer coisa que pudesse me ajudar. Um padre? Os padres têm ar de limpeza externa e impureza moral. Um cego não pode consultar a imundícia moral de ninguém, e minha única constatação era de que o homem tinha excelentes hábitos higiênicos e não tinha o mau gosto de usar perfumes. '”Levanta, vem aqui”. Pedi que ele apenas me conduzisse pelos ombros, sem apertar meu braço. “Tudo bem, vamos andando, é por aqui... “ Segurou meu punho e conduziu-me a algo que pareciam outros ombros. Tateei e percebi que eram as costas de homem de gesso. “São as costas de Cristo”. “Está sentido os ferimentos?” “Ele foi açoitado, está sentido?” “Toque, não tenha medo... está sentindo os ferimentos?”

O escultor dono de um senso de simetria perfeito, fez os açoites parecerem figuras geométricas, não aquelas feridas caóticas onde o sangue respinga desordenado pelas costas do ferido; eram cortes simétricos, unidos. Com a voz embargada o homem disse “aqui... está sentido, são as mãos...” Eram dedos pontudos, com perfurações circulares no centro de suas mãos. Passei todos os dedos sobre a profunda ferida. Era tão verossímil que, sem que o homem percebesse, passei as mãos em minha jaqueta para retirar o sangue. “Aqui são os pés... Jesus agüentou toda essa dor... por nós... “ Pensei que aquele homem queria me impingir a sensação física de dor. E, antes que me mostrasse as outras chagas, hesitei em dizer que a dor moral é ainda mais forte. E que o tapa, um tapa que um escultor não pode representar, é ainda mais doloroso que açoites ou perfurações nas mãos. Engolir um tapa na cara foi uma grande proeza desse deus encarnado. Mas não era uma lição fácil de se ensinar. Envolve um masoquismo que recalcitrantes não aceitaríamos, porque, na maioria das vezes, nosso sadismo prevalece, e talvez o homem de voz embargada acariciasse aquelas chagas para obter... prazer.
“Toque aqui... Aqui está a ferida da lança... “ Coloquei meu indicador dentro da ferida, gostaria que houvesse, ali, um coração pulsante. Era só gesso. E eu pedi para o homem me devolver aos bancos.

“Jesus suportou mais, muito mais, meu jovem”. Cordato, eu disse que sim. Gostaria de pedir vinho para homem. O vinho é sublime. Desde minha cegueira passei a degustar vinhos. Pena que os rótulos não são escritos em braile. Nunca gosto de perguntar qual é o nome do vinho que estou tomando para saber diferenciá-los. A morte de Cristo é uma lição de enofilia. Lembrei-me que ainda havia sangue em meus dedos. Chupei-os. “Jesus teve sede, e lhe deram vinagre”, disse o homem. Sua voz era vibrante, e pensei em apertá-lo, como a uma esponja encharcada com vinagre. Levantei-me e saí.

Na porta da Igreja, ouvi: 'No princípio criou Deus os céus e terra. E disse Deus...', o homem, cuja voz de barítono irrompeu o silêncio palpável do ambiente, arrematou “E disse Deus: haja Luz! E viu Deus que luz era boa”.

A chuva passou. Sabia que havia um sol, que esquentou minha face.


Thiago Cardoso

O Fenômeno

Deus o tocou quando nasceu.

Essa frase, de um famoso jornalista na época do Terceiro Grand Prix Mundial de Xadrez, se tornara popular. E, de tão repetida, o que era lenda já figurava como mito contemporâneo, e o que era mito parecia entrar na História. Franz Hockelheim, o brasileiro com nome de alemão, o homem com cérebro de computador. O nome era imponente, agora mais do que nunca. Contudo, sua preferência seria eternamente pelo jeito que a tia o chamava: Franzino. A alcunha soava depreciativa e zombeteira, ainda mais se levando em conta o metro e meio de altura que portava menos de 40 quilos de carne branca. Mas para ele não existia outro tom que não o de mais puro carinho quando vindo da voz doce e cálida de Tia Adelaide, que lhe criara desde muito pequeno, há mais de três décadas.

Vinte e sete anos atrás ela vira Franzino conquistar seu primeiro campeonato brasileiro de xadrez, sob flashes e aplausos estupefatos. Gritos ecoavam pelo ginásio enquanto o menino prodígio só conseguia prestar atencão às bochechas rosadas e apertadas de alegria de sua tia, que chorava de uma forma que o tocara profundamente, deixando rastros n'uma memória tão vazia de pessoas, de amigos. Ele estava decidido a trazer felicidade e contentamento àqueles olhos sofridos enquanto vivesse, porque talvez fosse a única maneira de agradecer o cuidado tão especial que recebia de Tia Adelaide desde que seus pais haviam abandonado este mundo; se os seus feitos por si não cumprissem tal tarefa, o dinheiro que deles brotava milagroso certamente a cumpriria. Franzino só tinha Adelaide em sua vida, e a amava por todos os outros amores que lhe faltavam até então.

Franzino não acreditava no que diziam dele, não mesmo. Chamavam-no de especial e de quase divino numa época em que as estrelas deste país mais uma vez minguavam, enquanto guerras destroçavam nações em outras partes do mundo. Franz Hockelheim fora tocado por Deus onde ninguém mais sequer se aproximava dEle, era o que se pensava. Pesquisas científicas de diversos centros no planeta estudavam seus hemisférios cerebrais detalhadamente, submetendo-o a exames dos mais variados métodos, muitas vezes chegando a castigar seu frágil corpo. Junto da inteligência suprema, ele havia nascido com uma série de deficiências, desde as glândulas, passando pelo baço e atingindo até a tireóide, dificultando o seu crescimento. Mas o que naquele corpo se destacava era coisa muito distinta: havia uma anomalia impressionante em seus genes. Com quase trinta e seis anos agora, Franzino de fato parecia uma criança aos olhos do mundo, mas seu cérebro apresentava um desenvolvimento que equivalia a 500 anos de aceleradíssima evolução cognitiva, e daí que o estimavam. Através de uma técnica de última tecnologia, houve exames de DNA em parentes de várias linhas e níveis de sua árvore genealógica, e o mais incrível foi terem descoberto traços da mesma anomalia somente em três pessoas: um homem de quinze gerações anteriores, um tataravô e sua tia Adelaide.

Sim, por puro acaso, a Tia Adelaide era uma forma atávica cento e cinqüenta vezes mais branda da anomalia. O dia em que descobriram isso, houve alarde e tumulto para entrevistar a velha senhora, que simplesmente não sabia o que dizer, que não tinha muito a pensar. Por dias a atenção se centrou sobre ela, enquanto Franzino enfrentava um desafio milionário que já tinha meses, um confronto de xadrez com um avançadíssimo supercomputador. Incomodava muito toda aquela pressão dos meios jornalísticos e acadêmicos, agora focada totalmente sobre tia Adelaide. Porém, no fim das contas, ambos concordaram que a notícia viera pra bem, pois assim talvez Franz tivesse mais tempo hábil pra lidar com o desafio, cuja dificuldade crescia cada vez mais.

Era início do inverno quando o placar estava 350 para o homem e 375 para a máquina, depois de 40 partidas de xadrez e 20 de matemática pura. Tia Adelaide adentrava o quarto de seu sobrinho carregando uma bandeja com chá preto e torradas, que sempre estimulavam a mente já exausta do gênio mergulhado na imensa poltrona de couro.

— Se eu fui tocado por Deus, seu chazinho foi feito com água sagrada, tia – brincava ele, cuspindo farelos de torrada.

— Ô, meu querido, que é isso... são só feitos com muito carinho, carinho da sua tia.

— Carinho de mãe – olhou de lado pro rosto redondo e emocionado dela – juro. Não sei como eu poderia vencer um desafio desses sem a senhora por perto.

Tia Adelaide fez um longo e pesado cafuné no cabelo ralo.

— Com o dom que Ele te deu, você pode vencer qualquer desafio.

— Eu sei, todos acreditam no meu dom. Mas pra mim, basta que a senhora acredite em mim. Basta a sua fé, tia.

Ela o abraçou pelo pescoço, beijando sua nuca, enquanto lágrimas escondidas escapavam por entre os sulcos do rosto castigado pelo tempo. Em contraste, a pele lisa e imaculada de Franzino brilhava por sobre o rubor. Ele também chorava, só que dentro d'alma. Por fim, ambos levantaram os olhos pra tela do computador.

— Mas, e então, como está a partida?

— Tô perdendo, tia – Franz fez um muxoxo poucas vezes visto por Tia Adelaide, que arqueou as sombrancelhas, limpando as lágrimas com o braço – esse computadorzinho Sony-Kindermann é o meu melhor inimigo até hoje, não tenha dúvida. Raramente encontro brechas pra explorar. Agora estou parado desde manhã numa nova prova de matemática, tendo problemas com uma função esquisita, que eu nunca vi em computador algum dessa série.

Franzino coçou a nuca, apoiando o queixo na outra mão, olhar novamente fixo na tela, investigando todas as variáveis possíveis. Tia Adelaide se surpreendeu e fez a volta na poltrona para fitar seu sobrinho mais atentamente. Ele tinha algo nos olhos que ela não podia decifrar, era coisa das mais estranhas.

— Está tudo bem, meu filho? Você me parece um pouco longe...

Ele rapidamente virou o olhar pra ela, como se já esperasse a pergunta.

— É, tia... na verdade tem algo me incomodando, sim – falava olhando pro chão, pensativo.

— O que é? Me fala. Nunca te vi incomodado em meio a tantos raciocínios.

— É que o problema é por causa sua...

— Ué, que foi? Eu estou bem, querido.

— Eu sei, mas sabe... me incomoda a senhora ficar se expondo assim pra mídia. Nas últimas duas semanas eu tive o maior período de paz e tranqüilidade desde meus treze anos, tudo bem, mas não queria que isso se desse em troca dessa pressão sobre a senhora.

Tocada, ela acariciou o rosto preocupado de Franzino.

— Ah, meu filho, não se preocupe com isso não. Eu lido bem com essa gente. Pra falar a verdade, acho até divertido. E afinal está te ajudando, não é?

Franzino baixou a cabeça, parecendo de repente muito consternado.

— É... pode ser... Mas não acho que a senhora esteja preparada pra esse caos todo não. Eu sei bem como é, são mais de vinte anos de assédio, tia. Até seitas religiosas vieram atrás de mim, até em conferências de paz eu compareci. Meu Deus, você lembra quando leiloaram a camiseta que eu usei quando venci Sid Aslan?

— Claro, como podia esquecer! Muito eu passei aquela camiseta e agora ela está exposta em uma cúpula de vidro! – riu, sozinha em sua empolgação.

— É, ela poderia nos sustentar por toda a vida, mesmo sem os vários prêmios que ganho. Você me entende, tia? Sabe que estou preocupado agora. Poderia fazer o favor de se expor menos a eles? Acho que vai ser melhor pra todo mundo, principalmente pra senhora.

— Claro, meu filho, claro – ela deu tapinhas no ombro dele – não se preocupe. Vou impedir que essa gente passe sequer do portão. Precisamos mesmo de descanso.

Franzino concordou com a cabeça, sem tanta convicção. Deu um beijo na testa dela e levantou rapidamente o corpo esguio da poltrona, mais disposto, aquecendo novamente o coração de Tia Adelaide.

— Vou lá pegar a manteiga e uma faca. Essas torradinhas ficam muito melhor com manteiga! Não, tia, pode deixar que eu pego, não tem problema.

Ele foi caminhando lentamente, saindo do quarto em direção ao corredor alto e enorme que levava à cozinha. Tia Adelaide ficou ali, escorada na poltrona, admirando seu franzino, tão preocupado, tão generoso com ela. Não demorou muito para que a velha senhora voltasse os olhos cansados à tela do computador, curiosa.

Padrões brancos e verdes se formavam sobre um fundo azul cintilante, com números aleatórios surgindo na linha de baixo. À primeira vista, aquilo pareceu cansar ainda mais seus globos oculares, que recém haviam passado por uma cirurgia contra a catarata. Ela estava prestes a abandonar o olhar dali, quando algo surgiu, fulminante.

Clarões e feixes de luz se espalharam por uma imensa parte de seu cérebro, e ela podia ver grandes descargas e novas sinapses se formando. Neurônios saltaram do escuro mil vezes mais forte, disfarçados em pensamentos e teorias que pululavam, inéditas na mente de Adelaide. Num instante, os livros de aritmética que lera na juventude voltavam à memória e agora pareciam ridículos e infantis, e teoremas apresentados nos últimos tempos no jornal das oito horas soavam patéticos e charlatões, ou ineditamente geniais à sua concepção da realidade. Mais importante do que tudo, as partidas de xadrez do próprio sobrinho, que ela tanto amava e admirava, passaram ao status de banais e simplórias.

Em segundos, Adelaide havia dado um salto quântico dentro de si mesma que quase fritara seu cérebro, e sua visão ganhara novas cores e nenhum padrão na tela cansava mais seus olhos, que viam longe, muito longe, para dentro e para fora do espaço-tempo. Lentamente ela curvou a coluna enrijecida sobre o teclado e digitou cinco números no campo de resposta que piscava, enquanto o colar de rosário balançava em frente à tela azul. Cada tecla era um passo adiante, como a realização de um poder há muito escondido. Não era um traço genético minúsculo, como afirmavam, era o poder puro, a mente suprema se manifestando.

Franzino parou diante da porta com a manteiga e a faca em mãos, quando sua tia apertou finalmente o Enter. No canto esquerdo superior da tela, um placar desceu e os números 350 saltaram para 395, e o nome de Franz Hockelheim ficou verde novamente. O computador falava “Well done” na caixa de diálogo enquanto uma luz verde piscou na máquina de fax à direita da máquina central, e uma folha foi impressa com diversas seqüências de números e códigos. O celular de Franz começou a tocar. Assim que parou, o silêncio engoliu o grande quarto.

Franzino assistira a tudo, estupefato. Assustada e alarmada, sua tia se virou pra falar algo. Mas apenas a boca se movimentava, Tia Adelaide não conseguia falar. Suas mãos tremiam, como se o poder fosse grande demais para controlar, como se a força da mente se somatizasse sem dó. Ou algum outro sentimento estava por trás daquilo.
Para Franzino, sentimento algum importava agora. Ele só conseguia fitar a tela, enquanto adentrava lentamente o quarto, se aproximando da poltrona. A manteiga caiu, pintando de amarelo lustroso o couro e o tapete. Ele se virou para sua tia com os olhos escancarados e as íris minúsculas. Os lábios ameaçavam se mexer.

— Eu... eu... – era só o que tia Adelaide conseguia balbuciar. Então o olhar de Franzino ficou mais agudo, como a ponta da faca que ainda segurava.

Lágrimas começaram a rolar do rosto frágil e estupefato quando ele ergueu a mão e, num movimento muito rápido, deslocou o ar em golpes que jamais se imaginaria que ele tivesse a força física de desferir. A pequena faca entrou muitas vezes no rosto, pescoço e colo da velha senhora, que, sem reação alguma, apenas erguia os braços conforme ia ao chão, banhando-se em sua própria poça de sangue. Estirada, Adelaide ainda segurou o calcanhar do sobrinho, que com uma força descomunal parecia enterrado no tapete. Franz deu então o golpe derradeiro na nuca enrugada.

A faca caiu, e o homem tocado por Deus contemplava com pavor suas pequenas mãos, manchadas de um escarlate fulgurante. E assim lhe encontraram; na mesma posição e feição, com o coração parado, várias horas depois.

Por muitos anos ainda se discutiu o que Franz vira nas mãos. Se fora o temor pelo que acabara de cometer, se fora o dom que ele descobrira não ser tão genuíno.

Para mim, ele simplesmente não queria perder o posto de a mais perfeita máquina criada pela natureza. Ainda bem que eu, a parte mais importante do corpo daquela reles senhora, resisti. Agora, mergulhado neste tubo de suspensão, acho graça desses homens de branco que me admiram.

Não só eles, mas o mundo me contempla. E se rende.

Eu sou Deus.



Renan Santos