O maior homem do universo – parte I

Davi crescera acostumado à sensação de ser O Outro. Desde que compreendera tanto sua identidade quanto a concretude do mundo, abandonando o solipsismo característico da infância, afastara-se deste mesmo mundo de forma intuitiva, como uma reação impressa em seus genes (que, se investigados, quem sabe não contassem histórias milenares parecidas). Criara-se um menino arisco, calado, disposto a entregar tudo para não depender de tudo. Tinha medo do que o cercava, fosse gente ou circunstância, passado ou futuro. Desenvolvera uma ansiedade crônica por intermédio disso, porém sentia na alma que essa postura temerária o perseguia desde que Universo havia deixado de ser uma singularidade, e que suas reações tão peculiares diante da vida eram somente ecos, não tensões com a própria realidade. Davi era o que era; e, por fim, já beirando a casa dos trinta, começava a entender essas coisas. Deixara de lamentar as suas vãs incongruências, as suas inquietações com o banal de nossos dias. Mas as reações por si continuavam. Era sua natureza, embora agora mais acomada e compreendida. E foi esse seu modo de vida que o catapultou contra um adversário da vida, aquele que se manteria para sempre o seu antagonista absoluto. O problema tinha um metro e setenta e quatro de altura, noventa e sete centímetros de busto, cinqüenta e dois de cintura e noventa e nove de quadris, longos cabelos castanhos repletos de luzes, uma boca carnuda, grossa, cartunesca, olhos límpidos, azuis como o céu daquela tarde, o nariz fino e rebitado como se exigia a uma princesa.

Anelise flutuava pela 24 de Outubro, e era imperatriz também daqueles domínios. Seus cabelos castanhos pingados de ouro brilhavam intensamente sob o sol, enquanto nos dois lados da avenida alguns vassalos restavam atônitos diante do seu poder. Ao aguardar o sinal na esquina com a Goethe, Anelise virou o olhar para o céu. Uma infinitude de azuis percorria o espaço. O sol, mesmo tão poderoso, entrava difuso pelas grossas lentes de seu Louis Vitton, aquele de aro branco pelo qual tanto era apaixonada. Sentia que mesmo das sacadas dos prédios lhe observavam, e ela as percorria com os olhos, contente, embora aquela arquitetura setentista não lhe agradasse.

O sinal ficou verde para Anelise. As listras brancas do asfalto estavam pintadas ali para traçar o seu caminho em mais um desfile aberto a tantos olhares entorpecidos, perdidos que estavam diante dos volantes, ou lá dentro do ônibus, segurando a bolsa de alguma velhinha. Todos os sexos a contemplavam. Salvo a inveja mais legítima de algumas mulheres, elas a admiravam plenamente. Para as mais jovens, Anelise era sinônimo de ideal a ser atingido; para as senhoras, representava uma beleza nostálgica e repaginada pelos novos tempos e suas modas. Era o início do verão, e Anelise trajava uma saia branca Chanel sutilmente plissada, cujos movimentos hipnotizantes decoravam coxas fortes e reluzentes. A blusinha de lã estampada da Colcci se desregrava, pondo à mostra aquela cintura de taça de tulipa, coberta por uma fina pele bronzeada. Os seios não abusavam de nenhum decote vulgar, mas se aprumavam como montanhas gêmeas, suas curvas dotadas daquele ideal que é imperfeito geometricamente mas perfeito em sua impressão total, capaz de excitar o mais fugidio dos olhares. Não se ousaria na prosa fácil imputar movimentos bailarinos a essa esplêndida Anelise, porque a força com que enterrava suas sandalhas Gucci na calçada vinha mostrar a todos a superioridade da beleza enérgica, intrépida, orgulhosa. Assim é que deviam ser as mais cantadas princesas das cortes clássicas. Pois agora a beleza antiga se rendia às marcas globais da haute couture e do artesanato muscular das academias de ginástica. E era isso que Anelise representava, portando o ar nobilíssimo e altivo o qual compartilham na História todas as deusas da beleza.

Porém, aquele não era um dia qualquer. Os astros haviam se alinhado, e o reflexo do fenômeno incidia diretamente sobre Porto Alegre. Os semáforos enlouqueciam, os cachorros latiam, as atendentes da repartição pública sorriam (zombeteiras). Davi desceu do ônibus e pôde ver que a rua estava vazia. Acabara de acordar do cochilo durante a curta viagem, custo da noite insone – custo tão recorrente que já vinha em débito automático. Dessa vez nem bebera tanto, mas o bafo de cerveja já fazia parte do seu organismo, a digestão já tendo dificuldades em prescindir do suco gástrico de cevada. Contemplou os dois lados da Padre Chagas e andou, andou firme, de tão absorto. Como sempre, trazia o seu uniforme: o óculos grosso e intimidativo, o velho casaco preto, de quem já morreu, e um livrinho amigo debaixo do braço. Vinha junto de Davi uma carcaça, um endoesqueleto de plástico, exíguo de proezas, se bem que até coberto de alguma resistência, pois não era fácil essa vida de carregador de livros e HQ’s. Vivendo num arrastar fantasmagórico, quase que impersonalizado, o espírito vê-se na necessidade de se dobrar, de inventar coisas, de surgir com intenções e desejos totalmente inéditos para juntar forças e rebocar o que sobra do indivíduo. Davi gostaria muito de poder se livrar desse substrato incômodo, ou de obter a chance de trocá-lo, quem sabe trocá-lo seguidamente, como um refil. Ou como a pele de um lagarto. Não que restasse grande coisa debaixo disso, embora não fosse muito modesto ao avaliar suas capacidades intelectuais. De qualquer forma, o que o amedrontava mesmo era perceber que não era um caolho em terra de cego, mas um homem azul em terra de povo amarelo e elite vermelha.

O vento apertou, e Anelise teve que segurar a saia para não causar maiores estragos ao trânsito da avenida. Mas logo livrou todas aquelas pobres almas de suas penitências ao dobrar a esquina da rua do banco. Prosseguiu firme, como sempre, contemplando os desenhos que o sol fazia sobre a escultura babilônica, enquanto a mente ponderava horários e compromissos. Não que tivesse muitos; o caso é que não era das mulheres mais decididas. Vivia desmarcando encontros e mudando trajetos em cima da hora, porque uma alternativa qualquer, então quase esquecida, subitamente iluminava-se, como aquele anel H Stern que ganhara ano passado. No momento ela até tinha lá alguma segurança sobre seu destino; vinha de um pequeno passeio no parque, depois de uma tentativa frustrada de marcar com algumas amigas um chimarrão ao fim da tarde, e voltava para, quem sabe, sua casa. Não gostava de ficar vagando pelas redondezas, assim, meio perdida, embora sempre surgisse algum amigo ou estranho para lhe oferecer um pouco de seu tempo.

Aconteciam os momentos de desligamento total de Anelise, sim, aconteciam; ela podia ficar completamente ignorante de sua influência sobre o ambiente, mesmo que por poucos segundos. É que há certos pensamentos que são inadiáveis, são instantâneos, mas sabia que devia ter um maior controle sobre si mesma. Agora, por exemplo, ela rememorava todas as histórias do seu último fim de semana na praia, e as imagens surgiam com muita força, intrépidas. Com tantos momentos especiais avultando-se em sua cabeça, dobrou a esquina com um grande sorriso no rosto. E poucos foram tão felizes quanto aqueles que a vislumbraram naquele instante. Será que imaginariam o que viria a seguir, a poucos metros de mais um instante sublime?

Pois um homem não olhou para Anelise. Nem sequer se moveu. Não fosse pelo movimento dos dedos sobre a mesa do bar, o dariam como morto. O mundo congelou-se então. Anelise observava aquele homem como a quem observa algo repugnante. Mas logo a repugnância deu vazão à curiosidade, uma curiosidade ao estranho. Impunha-se uma ponta de ansiedade, nervosa que estava ficando com aquele descaso. O homem mantinha sua concentração no livro, numa pose de quem descansa no sofá de casa enquanto a TV só empresta ruído ao ambiente, como agora o movimento da rua repetia, e os carros buzinavam, e o couro e a camurça batiam sobre as pedras da calçada. Por que não olhava? Por que não olhava? Que rebeldia estranha, uma tola afronta aos instintos, ao faro das ruas, aos andares, à sedução pública. Quem ousaria neste século revolver a mais irremediável das instituições, que é o olhar que se furta? Anelise nutria agora uma esperança telecinética, com a visão a imaginar aqueles olhos baixos e engarrafados penetrando na sua carne. Não adiantava, não se mexiam.

Anelise desistiu e virou-se para prosseguir. Seus pensamentos já não eram assim tão vãos, pois incidiam sobre aquele homem como uma turba contida. Claramente não era acostumada à inquietude, mas que dirá então a ser ignorada? Entregar-se àquele sujeito insignificante? Permitir que tal fato se consumasse? Era quase uma distopia. Desvirou-se, os cabelos rodopiando sobre os ombros, e a boca comprimindo-se num furor mal disfarçado de insipidez elegante. Firmou o passe em direção à mesa. Olhava, e desviava o olhar. Insistia, prosseguia, o coração pulsando, impelido por um inédito temor. A insignificância do sujeito não a dissuadia, como se por caridade estivesse oferecendo a ele um momento único, histórico. Anelise bem que poderia tentar esquecê-lo, mas aquele rosto pueril e compenetrado de qualquer forma teria deixado alguma marca sobre o fundo impressionável da sua mente.

Desviou o caminho. Ou tentou, porque ao esbarrar no garçom repentino, teve que, sem cerimônias, esgueirar-se por entre ele e a cadeira do estranho homem. A cena era ridícula, Anelise sabia disso. Não obstante, sentou-se, recolhida a uma das mesas mais próximas, quase de frente para ele, de onde podia continuar mirando o não-movimento de sua postura enigmática. Observava-o fixamente, de uma maneira constrangedora, tanto que já havia algum burburinho entre algumas meninas perto do balcão. Enquanto isso, do outro lado, um bando de rapazes suplantava o seu bate-papo com comentários sobre os prodigiosíssimos atributos de Anelise; que beleza era essa que, mesmo distraída, emanava a essência ativa, buscando os menores espaços da indigência mundana para inspirar o culto báquico, uma adoração redentora, uma realização magnífica.

Mas havia um homem capaz de revolucionar tal universo. Anelise não fora só pega de surpresa; mais do que isso, fora jogada em outra realidade, como quem acorda sufocando na pressão do oceano. Mesmo em seus instintos mais primários, nunca pensara na hipótese daquele homem existir. Sobre o mundo dela havia compêndios, enciclopédias, tratados e hagiogramas, inspirações divinas e arrebatamentos mundanos que jamais registraram um só passo daquele ser. Onde estava? E quem o jogou neste mundo?

Anelise não podia suportar. A beleza nunca foi pré-requisito para a resiliência, pelo contrário, talvez fosse sua antítese, ao menos na selva humana. Sua face dantes dourada e aguda começava a partir-se como louça antiga, e o esplendor de sua postura ruía como uma torre taromântica. Havia uma revolução em andamento, porque aquele homem inexpressivo e monolítico deslocava o centro de gravitação da belíssima Anelise como um demônio copernicano. Uma lágrima percorreu o calor de sua bochecha e repousou no couro frio da Victor Hugo.

O homem finalmente ergueu o rosto. O coração de Anelise disparou de vez, e ela se encolheu na cadeira. Seu suor reluzia pelo decote como lâminas em curva, provocando diversas reações pelo ambiente, reações que não mais lhe importavam. O homem girou o pescoço e pôs-se a observar a rua e a calçada, repousando o maciço livro na mesa. Anelise trocava de posição na cadeira a cada segundo. O homem pôs a mão no queixo e enfim deslocou o olhar para dentro do ambiente. Por um centésimo de segundo, cravou seus olhos nos olhos de Anelise (que respirou fundo), depois passou em seguida para as meninas do bar e então de volta ao seu livro. Anelise quase saltara da cadeira, e por pouco não riu de si mesma, tamanha a extravagância da situação. Mas o mundo é estranho, sabia, eternamente estranho. Limitou-se a sorrir quando concebeu o grau de ridículo em que se metera. Tal constatação lhe trouxe uma espécie de alívio, como quem escapa por pouco de um estado de demência. Suspirou, e olhou em volta, percebendo o fato de ainda ser o centro do universo visível. Ergueu o tronco e jogou os cabelos, e dessa vez a cadeira é que encolheu ante sua postura. Ali em frente estava o homem, e não era um homem, era um sujeitinho qualquer, pois agora ela voltava a ter discernimento. Um homem muito estranho, com barba onde teria rosto, com cravos onde teria barba. Seu nariz ossudo sustentava um óculos de aro grosso e lente funda, e a boca, nervosa, mastigava o ar com timidez. Lia alguma coisa a ver com Nietzsche, uma capa estranha, com escama de peixe, e folheava com a rapidez de quem enxerga as palavras mas não as lê. Onde é que estaria a atenção dele naquele momento?

Anelise nunca havia pensado onde é que estaria a atenção de alguém. Antes que mais novidades sobreviessem, levantou-se rapidamente e pôs-se para fora dali com todo aquele ímpeto de andar de passarela, podendo ouvir os gritos de protesto e de adeus, mas sem poder matar a curiosidade. Porque não olharia para trás. Não mais contribuiria para a existência vaga e nefanda daquele guri. Não mais.

Até que chegou na esquina e teve um ataque súbito de consciência retroativa. O guri não olhara. Não olhara. Tinha certeza, não olhara. De alguma forma, a realidade havia se remodelado. Estava incontida e angustiada; mas com quão magnífica visão era agraciado o guardador de carro do outro lado da rua, e o executivo antes nervoso ao telefone, e o motorista agora esquecido dos problemas. Que caridosa era a beleza de Anelise! O Senhor olha por nós!

Davi tinha certeza de que aquela moça havia olhado para ele, mesmo que por um segundo. Entendia o suficiente de mulheres para prognosticar seus olhares; eram geralmente sinais claríssimos de atenção. Mas Davi não podia conviver com isso, ah não, porque prognosticar as mulheres sempre se mostrou uma tarefa árdua, perigosa, coisa de especialista, e tais especialistas ou são gays ou são completos idiotas, pensava. Não queria ver-se enroscado mais uma vez na trama espessa e confusa da arquitetura feminina, percorrendo o caminho já bem conhecido entre a dúvida e o acúmulo de mais dúvida, a restar as incomodações típicas, estas sim bem conhecidas e eternamente diagnosticadas. Ora, bastava de elocubrações, porque de fato não houve beldade alguma distribuindo olhares generosos – é claro que não, repetia para si mesmo.

Davi afundou a cara no livro. Seus ouvidos se aguçaram, restituindo as ações do ambiente na tridimensionalidade de sua cabeça. Repetia cinco linhas de um mesmo parágrafo até que pudesse acompanhar toda a retumbante passada de uma mulher que se dirigia vibrante ao banheiro, e demorava-se sobre palavras desfocadas enquanto notava o tilintar de pratos, copos e xícaras, ruídos que de picotantes findavam harmoniosos e serenos, mentalizando um cenário de pessoas completamente ignorantes de sua beleza, na qual elas próprias participavam. Além disso tudo, além da frugalidade universal, não havia muito que Davi pudesse perceber, e por isso é que tomou já um susto muito grande quando alguém se aproximou e se dirigiu a ele, alguém que não era um garçom. Do susto foi ao pavor quando pôde entender que ser era aquele que se materializara à sua frente.

Anelise segurava a alça da bolsa com firmeza junto ao corpo. A tensão do encontro cara a cara era ainda maior do que havia imaginado. Em seu trajeto de volta, ela viera desde a esquina mordendo os lábios num estado de ansiedade que jamais imaginou para si, nem nos mais aquilatados eventos dos quais tanto participava (aliás, que beleza era essa que não impedia tais temores?).

— Comece a sorrir – ela falou baixinho, se inclinando.

— Oi?

— Comece a sorrir – repetiu, com uma risadinha sem graça.

Era um pedido ou uma ordem? Davi não teve lá muitas dúvidas e sorriu timidamente. Anelise fez o que pôde para transformar o seu próprio sorriso forçado n’um contentamento genuíno.

— Agora finja que nos conhecemos – falava por entre os dentes cerrados, buscando o máximo de discrição. Davi, muito admirado, já intuía um tom sério e formal.

— Olá!...

— Anelise – completou ela, mais baixinho.

— ...Anelise!

— Ane, melhor Ane – Davi quase não ouvia mais sua voz.

— Ane! Tudo bem? – e Davi se levantou intrepidamente da cadeira, exclamando “Não tinha te visto!”. Formidável ator, sem dúvidas, já que tremia por dentro. Fez menção de avançar o rosto para cumprimentá-la aos beijos, coisa de quem é íntimo, mas, além da estupenda e intimidante beleza, aqueles olhos cintilavam de um jeito estranho, ameaçador, como duas armas apontadas impedindo qualquer tentativa de movimento mais brusco.

Que encontro formidável este, de tensões infinitas! Entre eles uma troca incessante de olhares fugidios, como que temendo a suma batalha. Não por menos que Davi estivera ouvindo muito Enio Morricone nos últimos tempos – quem sabe seu instinto musical já previra o insólito confronto. E quem sabe não fosse mais agradável trocar o Moinhos de Vento pelo Velho Oeste, o Candy Blue por algum saloon caindo aos pedaços.

Mas haveria mesmo como pensar n’um confronto ao contemplar aqueles olhos verdes, tão maravilhosos? Aquela boca tão vívida e tão bem moldada? Aquele corpo tão matematicamente esculpido? Imaginar descaso ou vingança mesmo ao sentir aquele aroma, aquela essência alquímica inebriante? Anelise era um cadinho onde se misturavam as mais fêmeas das substâncias; o resultado era um disparate contra o intelecto casto, uma tentativa constante de liquidar a boa razão.

Davi nunca vira algo parecido, e por isso estava ainda mais curioso. Pediu outro café. O garçom ficou olhando para Anelise por diversos motivos, e também porque aguardava o seu pedido, mas ela logo o privou do deleite e disse-lhe que também queria um café. Com açúcar.

— Bem, e então? – disse Davi, finalmente. Já não agüentava mais. Continuava atuando muito bem, parecia calmo e sereno, sem nem imaginar o quanto crescia diante de Anelise com esta postura, tanto que ela agora evitava olhar nos seus olhos.

A resposta não vinha. Davi contemplava a mesa enquanto coçava a perna por baixo dela. Quem assistisse à cena imaginaria se tratar de um casal em crise, embora só abstratamente, pois que nunca conceberiam sequer um beijo entre aqueles dois personagens.

O celular de Anelise tocou, e a vibração oca sobre madeira assustou-a como um tiro. Irritadíssima, desligou o aparelho, esbravejando baixinho, visivelmente transtornada.

— Desculpa, é o seguinte – disse, e parou de repente, fitando os olhos redondos de Davi, como que acordando para a realidade. Começou a rir, e o sangue fervente fazia-a enrubescer ainda mais. Um sarcasmo acríssimo sibilava por seus olhos, como o escape do que refletira brevemente – isso só pode ser brincadeira! Será que estou ficando louca?

Davi, aflito, também queria a resposta. Foi abrir a boca, quando o garçom repousou duas xícaras na mesa, e então decidiu se ocupar com o café.

— Quem é você, afinal? – foi o que ela perguntou. Não havia pergunta mais difícil e nebulosa no Universo. Quando Davi a repensou, seu cérebro quase explodiu, e o que Anelise via eram só piscadelas, rapidíssimas, como um olhar de criança.

— Por que você quer saber? – Não lhe parecia haver réplica mais precisa do que esta. Anelise achou-o rude, mas jamais ele quis sê-lo. Assim como acontece com as crianças.

— Eu sempre fiquei imaginando como seria esse dia.

— Que dia?

— O dia em que eu sentaria por minha própria vontade à mesa de um estranho e o retardado perguntaria o que eu estou querendo.

Davi olhou bem nos seus olhos desta vez, enquanto ela ria afetadamente. Sim, ela realmente quisera dizer aquilo. Então, um estalo – Davi sorriu (não sem assustar Anelise) e pôs-se a perscrutar as paredes, o teto e a movimentação na rua em busca da câmera escondida.

— É uma pegadinha? – enfim perguntou, e achou que Anelise ria de sua ingenuidade, quando na verdade ela achava incrível os dois estarem pensando na mesma hipótese. Porém, quem seria idiota a ponto de montar um enredo tão nonsense? se perguntou.

— Qual é o teu nome?

— Davi...

Anelise estendeu a mão, e se cumprimentaram. Davi estava cada vez mais incrédulo, e foi a vez de perguntar:

— O que você quer?

— Nada, é que gosto desta cadeira.

Davi riu e continuou procurando câmeras.

 

Renan Santos