Nós, o banquete

Roger era canibal desde os vinte anos, quando descobriu o sabor esplendoroso de uma bela carne humana. Sua visita, Ana Lúcia, não tinha conhecimento disso, pois que recém chegara ao bairro e já fora logo aceitando o convite de jantar do novo vizinho, um homem alto, belo e solteiro. Eram dez da noite quando a campainha tocou. Roger recém havia desligado o forno. Pôs a carne já devidamente fatiada sobre a mesa e correu para atender a porta. Cumprimentaram-se, ambos ainda um tanto sem jeito, banhados numa atmosfera de flerte e novidade. Ana Lúcia elogiou o arroz com legumes e a carne de porco ao molho de laranja, sem jamais desconfiar que estivesse degustando os músculos de um homem chamado Elias Tobán, um chileno gordo, velho conhecido de Roger.

Conversaram sobre os arredores, sobre comidas e enfim sobre si mesmos.

— E então? O que realmente te traz para estas bandas? – perguntou Roger, com um olhar cheio de calor, terminando de engolir o naco fibroso. A mulher sorvia o vinho com rapidez.

— Ah, mudanças... Mudanças, sempre elas. Sempre fui uma mulher muito independente e bem vivida, uma metamorfose... uma metamorfose ambulante. Saí de casa muito cedo. Logo que me formei, coloquei minha pastinha debaixo do braço e me mandei pra São Paulo. Lá trabalhei em cinco agências. Anos depois fui pro Rio à convite de um amigo, diretor de uma firma de design, e hoje estou aqui.

— Tu és designer...

— É, agora largando um pouco essa função, finalmente. Estou vendo o que se pode tirar de veia administrativa deste corpinho. Entrei num negócio de webdesign, com dois amigos gaúchos que fiz no meu mestrado em Sampa.

— Ah, tu tens mestrado... Que legal. Então gostas de viagens e de estudo.

Ana sorriu, encabulada com o olhar bajulador do homem.

— Olha, nunca fui de muito estudo não. Mas sempre fui apaixonada pela minha área, e por isso não parei de me aprimorar. Acho importante, não é?

— Claro. Sem dúvida – Roger riu de um jeito forçado, desconcertante. O rosto perdido da sorridente Ana aguardava uma resposta – Desculpa, é que tu tens mesmo cara de designer. Impressionante.

— Ah, é, é? E qual seria o perfil, posso saber? Não, na verdade estou brincando, eu sei bem como é o estereótipo. Um visual moderno, mas sem exageros típicos de publicitários e artistas, mais clean. Uma independência exibida, um tipo de orgulho diferente, adorando falar de suas mudanças. Ah, claro, um cabelo não muito longo, repicadinho, que nem o meu...

Caíram na gargalhada, cada vez mais à vontade. Depois houve um breve silêncio de olhares oblíquos, rompido por Roger:

— Sabe, eu tenho um lado artístico também.

— Ah, tem? Pois devo te dizer que assim, de cara, você aparenta um advogado, administrador ou coisa do tipo. Que foi? Estou falando sério! Não que você pareça muito certinho, não tem esse ar não. Mas, a julgar pela sua casa, pelas suas decorações, até mesmo pelas descrições que fez dos teus vizinhos, parece um homem do tipo “clássico”, se isso não te ofende.

— De forma alguma. Considero até um elogio.

— Ah, mas você sabe, eu sou designer... Posso não ter a visão mais neutra de “estética pessoal” – disse a moça, com um riso cada vez mais solto, o vinho aos poucos tomando-lhe as rédeas – sabe quantas vezes aceitei um simples jantar a sós como programa para a noite? Uma vez, com um ex lá de Belo Horizonte.

— Ele era clássico?

— Não exatamente, ele era conservador mesmo. Carola, reacionário. Um porre em determinadas ocasiões. Mas era uma gracinha e tinha um coração enorme.

— Tu não pareces ser o tipo de mulher que dê muita bola para algo como o espírito político. Eu particularmente louvo isso. Por mais idealistas que sejamos, no fim das contas o que sempre nos importa é a sensação primária das coisas, do mundo, das pessoas.

— Ah, na verdade, eu sou sim idealista. Mas, se formos o tempo todo tão exigentes, ou tão profundos nas nossas críticas, por mais que elas sejam verdadeiras, nos cansaremos rapidinho desse mundo – a moça apoiou o queixo sobre o punho, contemplando a grande janela da sala. Entre as cortinas amarronzadas, podia ver o reflexo da lua nas folhas das árvores.

Roger observava atentamente cada movimento do rosto da morena. A língua se mexia dentro da boca cerrada, sedenta. Seus olhares atentos se chocaram mais uma vez. A mulher prosseguiu:

— Talvez eu tenha encontrado um jeito de ser idealista na minha especialidade. Ah, já faz tempo isso. Confesso que hoje em dia dedico muito menos atenção à arte em si.

— Ora, que pena. Engraçado que quanto mais passa o tempo, mais me admira a beleza, a qualidade estética, tanto da natureza de Deus (perdoe-me se você for atéia) – ao qual ela fez uma deferência afetada – quanto da natureza do homem. Às vezes me sinto uma criança diante de um quadro, de um filme, até de uma música. Da mesma forma que os gregos, pra mim o justo é exatamente o que é belo. Por isso, no fim, tu tens muita razão quando me chama de clássico. Os costumes e a maneira de se lidar com o mundo nada mais são do que um reflexo da visão estética que a pessoa tem, não achas? Jamais apreciei Picasso e amo as obras de Rembrandt. Não tenho interesse algum em Nova York e meu sonho é morar em cidades como Glasgow ou Roma.

— Você tem razão. Isso basta pra se entender as atitudes de uma pessoa. Meu Deus, que curiosidade! Afinal, o que você faz da vida, homem?

Roger estufou o peito com um olhar blasé, para ver se arrancava-lhe mais risos.

— Sou, ou fui fotógrafo – ela arregalou os olhos – Bem, há muito tempo que não pratico a fotografia como deveria, e agora tenho pensado até em me dedicar à literatura, tentando me concentrar como posso. Porém, ainda amo a fotografia acima de tudo.

— Nossa, e eu arriscando até advogado. Agora entendo plenamente o papo sobre arte. Juro que você não parece escritor, que dirá fotógrafo. Estes não costumam ter um cabelo ousado? Usar colete?

— E um brinquinho.

Riram muito, o entusiasmo dela ainda muito mais efusivo. As longas pernas já se moviam com nervosismo debaixo da mesa, bagunçando a seda negra. Roger se levantou da cadeira estofada, avisando que iria pegar mais uma garrafa de vinho, e Ana Lúcia já imaginou o perigo que trariam mais duas ou três taças. Contudo, ela estava estranhamente mais do que disposta ao que quer que viesse daquele homem, que se movia e caminhava com a impavidez do bronze esculpido. Contemplou demoradamente as pernas, as costas e as nádegas de Roger conforme ele se dirigia ao bar ao lado da cozinha. Piscou os olhos com rapidez, surpresa, quando se deu conta de estar mordendo o lábio inferior. Achou graça. Há muito tempo não se sentia tão jovem, tão solta de amarras. Talvez o tempo vivido nas outras capitais houvesse lapidado uma rocha distinta. Porto Alegre era terreno novo, e o tal fotógrafo-escritor, com apenas uma hora de conversa, se mostrava totalmente diferente de todos os homens que conhecera. O mistério tomava cores da irresponsabilidade sem culpa.

Roger colocava o vinho sobre o bar, sacando o abridor, enquanto outros pensamentos borbulhavam em sua mente.

— Que tapado! Esqueci da sobremesa! – bradou, contemplando os pés inquietos de Ana Lúcia; do ângulo de Roger, eles margeavam o pilar do balcão como serpentes. Do ângulo de Ana Lúcia, o calor da luz do bar incidia sobre as mãos fortes de Roger.

— Ah, não se importe com isso! Mas que eu já estou sentindo falta de um docinho, isso estou. Adoro chocolate, viu?

A voz vacilante da morena soava-lhe deliciosa. Um brilho cor de vinho luziu nos dentes do homem.

— Precisamente o que eu tenho aqui – um minuto depois de algum ruído na cozinha, Roger voltava para a mesa ostentando o vinho e uma taça larga de alumínio, cheia de morangos cobertos por uma calda grossa de chocolate, e entre os dedos duas barrinhas de chocolate – Vê o que tenho aqui. Será que saciamos teu desejo?

Ana Lúcia arregalou os olhos, segurando o riso sem graça.

— Nossa. Com certeza. Hm, adoro morango, há muito tempo não comia. Está doce que é uma maravilha! Insisto na sua classe. Sigo me perguntando o que há de excêntrico em você.

Roger arqueou as sombrancelhas e pareceu relaxar-se com ainda mais vigor, como se finalmente tivesse surgido a deixa esperada. Ana Lúcia lambia o chocolate das pontas dos dedos.

— Todos temos excentricidades – disse Roger – Na maioria dos casos, o superego simplesmente dá algumas concessões, cheias de capricho. Até o ponto em que nos vejamos num conflito de personalidade. Ou de simples atitudes. Dentro dos costumes desta sociedade, claro.

— Ou talvez a id não seja poderosa o suficiente. Chocolate com psicanálise? – suspirou Ana Lúcia, com um fastio repentino, extremamente afetado. Estava brincando, ou queria parecer estar brincando. Roger não; ele era resoluto no prosseguimento do assunto e a observava cada vez mais interessado.

— Nosso desejo mais profundo nunca é poderoso demais. É tudo uma questão de equilíbrio de forças dentro de nossas mentes. Até que ponto a vontade é sincera, e até que ponto a sinceridade é arbitrária? – Roger fez uma pausa e, ainda com a taça de vinho na mão, se inclinou lentamente sobre a mesa, adentrando os olhos reluzentes da morena – Eu, por exemplo, tenho certeza de que tua mais pura vontade neste momento é ir pra cama comigo – falou, peremptório, silencioso, quase chiando.

Não houve reação. Os globos de Ana Lúcia faiscavam como se a mesa estivesse tomada por velas, e uma gota de ansiedade (ou de medo, não podia distingüir) percorreu-lhe o rosto. O sorriso não lhe deixava os lábios úmidos. Que homem era aquele? As bocas vacilaram a poucos centímetros de distância, e um vapor emanou entre as peles saturadas da atmosfera sensualíssima. Roger enfim recuou, e Ana se segurou como pôde para não morder o lábio, enquanto um vento frio percorria sua espinha. Os olhos não se desgrudavam. Nunca um homem estivera tão perto de sua boca sem tocá-la. Que fenômeno se passava? Um espasmo da última conversa ainda exalou dos lábios trêmulos de Ana:

— Sem dúvida, ainda há um universo de coisas a se descobrir em ti...

Roger bebia o vinho aos poucos, degustando-o de uma forma virtuosa, num espírito contido, quase franciscano.

— Então perderíamos toda a graça de nosso jantar, ou mesmo de nossas vidas.

Ana via agora um estilo que nascia de lugares ainda mais profundos do que pensara. E o homem mais do que nunca sabia estar no poder. Isto era fatal. Mas não podia evitar.

— Quero te descobrir tanto quanto tu queres a mim. Não é assim que vivemos? Não são as expectativas que nos fazem seguir adiante? Muitas vezes não sabemos por que temos medo de determinadas coisas, ou nojo, ou o que quer que seja. Se eu te perguntasse agora: “tu aceitarias experimentar coisas que jamais imaginaste que experimentarias?”, o que é que tu responderias?

Ana Lúcia jogou-se no encosto da cadeira novamente. O seu sorriso ficava cada vez mais irresoluto, na mesma proporção do brilho de curiosidade em seus olhos. O jogo da dúvida, da sedução e da filosofia do segredo se embaralhavam de uma forma tão prazerosa quanto o próprio chocolate que restava sobre a língua. Homens e mais homens duros e sem sentido trespassaram a sua mente, como num fundo opaco. Sem hesitar, a morena derramou mais vinho para dentro da taça e bebeu tudo num só movimento, soltando um estalo de alívio no ar, saciada. A cabeça começava a balançar mesmo que parada, e as luzes da sala e do bar foram ficando mais brilhantes. A boca de Roger era um fio vermelho em meio ao paraíso dourado.

— O que é que tu responderias? – insistiu ele, segurando com leveza a mão dela, a expressão dura do rosto velando uma grande expectativa pela resposta.

— Eu não tenho nada a perder, tenho?

— Jamais. Só temos a perder quando nos arrependemos do que não aconteceu.

— Tem razão. Eu quero.

Roger abriu um largo sorriso, o coração bombeando sangue por detrás do véu de segurança. Estava em êxtase. Aproximaram seus rostos e estalaram os lábios, Roger recuando antes que o beijo se aprofundasse, como tanto Ana Lúcia esperava. Roger teve dó da sua expressão carente e ao mesmo tempo insaciável, mas é que os objetivos eram por demais superiores àqueles. Alguma forma de compensação pela vida subsistia na sua mente, alguma forma de doutrina que lhe apetecia transmitir a uma pessoa que num instante lhe parecia tão íntima. Roger tivera poucos amigos na vida, e alguns deles acabaram como banquete. Isso era extremamente significativo: ele tinha dado parte de uma antiga amizade sua para uma mulher, ela tinha compartilhado de seu prazer e de sua gula, ela tinha engolido a mesma alma que a sua. Bastava que ela aceitasse isso da mesma forma.

Roger levantou-se, puxando Ana Lúcia pela mão. Enredada pelo álcool, ela tropeçou algumas vezes nas sandálias, pedindo desculpas coradas ao homem, que agora mantinha uma postura mais séria. Chegaram à cozinha, e Roger abriu a geladeira, enquanto Ana sentava-se diante da mesa de acrílico, perdida, um pequeno arrependimento já despontando por entre a confusão na sua cabeça. O homem retirou um pote branco de plástico com uma tampa quadriculada vermelha e o pousou no meio da mesa, observando os olhos cintilantes da morena. Abriu o pote, e ali havia pequeninos filetes de presunto. O olhar de “o que significa isso” de Ana logo foi preenchido pela intervenção um tanto nervosa de Roger:

— Não, isso não é presunto comum – mentiu, porque haviam custado três e cinquenta na venda da esquina – Me escuta: quantas dietas uma pessoa tenta a vida inteira, Ana? Quantas vezes te falaram sobre o nojo de moluscos, de cérebro de ovelha, de língua de vaca, ora, se tem gente até com nojo de cebola? Qual é o valor destas coisas? Que são esses costumes, que variam muito além do que se pensa? Tu não sabes mais o que é isto que tem neste pote, e isso te assusta. Não me olha desse jeito, eu sei que o momento não é pra isso, mas pra mim é muito importante, Ana. Tu não sabes o quanto eu busco ensinar certas coisas. Tu não tens idéia. Eu vejo nos teus olhos que tu podes me compreender, eu vi antes e vejo agora. Vamos, Ana, por que tu não provas este minúsculo pedacinho? Só para sentir o gosto, é só o que eu te peço. Por que recuas? Do que tens medo?

Ela o encarava incrédula.

— Tu tens medo é do desconhecido. O que eu tenho de excêntrico é isto, tu achas? Te propor uma situação nova, algo pelo qual tu nunca passaste antes na tua vida? Eu sei que tu és uma mulher preparada pras coisas, senão nem estaríamos aqui agora. Tu, como tantas outras pessoas, não sabes o que é o verdadeiro medo, Ana.

Ana Lúcia se afastou de vez, recuando aos tropeços até a parede oposta. A imagem obscura de Roger crescera assustadoramente diante de si. As pernas da morena continuavam suando por debaixo da saia, só que agora por motivos bem distintos. Não sabia mais o que estava experimentando, e já receava até mesmo por sua vida. Gritou:

— Afinal, o que é que você quer que eu prove?!

Roger fez sinal de silêncio, a paciência visivelmente se esvaindo pelos olhos escancarados. Contido, retirou um dos pedacinhos de presunto do pote e o ofereceu na ponta dos dedos à mulher.

— Eu só quero que tu proves isto. Só quero que tu proves o desconhecido. Tu és capaz de lidar com o que não conheces? Não me parece. Enfim... mais do que pertinente agora é te perguntar o que é que vale mais para ti nas coisas do mundo: o valor da essência ou o valor do nome? Esta é a pergunta de todas as perguntas, Ana.

Uma lágrima rolou pelo rosto dela. Ninguém esperava aquilo. Roger fechou os olhos, decepcionado, balançando a cabeça, relembrando toda a conversa que tiveram.

— Me entristece muito o ato da revelação, a entrega de algo tão estigmatizado a ponto de te afastar da verdade sensitiva. Mas é assim que tem que ser. Isto é carne humana. Carne da tua carne, Ana.

Todas as terminações nervosas do corpo já tão ardente de Ana tilintaram numa seqüência de descargas de terror e repulsa. Desequilibrada, ela foi ao chão, contemplando um Roger ainda maior e mais ameaçador. Num átimo, todo o desejo que durante a janta havia concentrado, carregado pela ânsia do desconhecido e pelo buquê do vinho francês, dissipou-se numa nuvem de vapor gelado de arrependimento e sensação de perigo fatal e imediato. O homem alto, belo, solteiro e inteligente tinha um prazer, uma admiração por carne humana, e isto ia contra todos os seus princípios. Como podia enganar-se tanto com uma pessoa, já havia acontecido antes, mas não de forma tão rápida.

Roger observava com tristeza a morena correr desajeitada até a porta. A imagem dela mudara de forma espantosa. O vestido estava manchado, os cabelos bagunçados, as pernas lanhadas pela ação mais pura da ignorância, e não havia algo mais repulsivo para Roger do que a ignorância e seu imenso poder. Vida triste tinha um homem que via-se obrigado a deleitar-se com o proibido e o desconhecido. Contudo, ambos formavam juntos uma imagem tão excêntrica (era essa a palavra correta?), que por suas próprias condicionalidades justificavam o prazer do canibal. Roger invejava as tribos mais primitivas. Sabia no fundo que seu desejo não era tão puro quanto o deles. Tinha conhecimento de que era ao mesmo tempo diferente e hipócrita quando acusava os costumes, pois que por eles agia como agia. Tanto que não acabava agora com a vida de um ser humano pela simples gula, e sim para manter sua liberdade. “Eu não tenho salvação”, pensava repetidamente nos dias seguintes, cabisbaixo. “Ou são eles que não têm”.



Era uma linda noite de Setembro quando jantava à mesa com seus amigos de futebol. Dificilmente trocavam elogios tão afetados com Roger, mas não paravam de louvar a bela carne de porco. O homem ficou muito orgulhoso, ainda mais por que não esperava que o corpo tão esbelto de Ana Lúcia rendesse lá muito sabor.


Renan Santos